I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 

GLOBALIZACAO DA ECONOMIA E O FUTURO DO TRABALHO

 

As crises econômicas a partir dos anos 70 representam para o capital um grande desafio.
O fracasso do Estado no controle da economia fez ressurgir a crença no poder do mercado sobre a alocação ótima dos recursos escassos. Na visão dos liberais, a crise econômica em si não existe. O que existem são desajustes temporários causados por fatores externos à economia, como a ação estatal, que deve, portanto, ser restringida.
A abertura da economia ao mercado externo, a desregulamentação e a privatização de empresas públicas é a solução defendida pelos tomadores de decisão nos rumos da economia e da sociedade.
No nível microeconômico, as empresas se reorganizam para adaptar-se ao modelo de desenvolvimento voltado para fora e à produção flexível.
Como resultado da crise, as empresas passaram a exercer uma redução forçada da utilização de equipamentos e insumos, o que reduz as margens de lucro, devido à manutenção de custos fixos de produção. Diante das perdas, o capital promove uma reestruturação das empresas, reduzindo ao mínimo necessário todos os coeficientes técnicos de produção.
No nível macroeconômico, com a abertura do comércio internacional, observa-se o que J.Katz, inspirado em Schumpeter, chama de "criação destrutiva" ( :115), pela qual empresas individuais e ramos da indústria perdem terreno relativo, enquanto outras ganham terreno. Como num jogo onde há perdedores e ganhadores, as empresas perdedoras são fechadas ou incorporadas; as ganhadoras promovem aquisições e fusões.
Empresas industriais nacionais, firmas estrangeiras e bancos internacionais integram suas atividades nos mercados mundiais, promovendo uma maior centralização e concentração da economia.
A reestruturação da economia e a superação de impasses econômicos tornaram-se possíveis com o desenvolvimento e uso de novas tecnologias de produção e de gestão do trabalho. O advento da microeletrônica permitiu mudanças na base técnico-social das empresas, a flexibilização da produção, dos custos (variáveis e fixos), da organização e das relações de trabalho. Estas mudanças objetivam aumentar a produtividade e garantir posição de competitividade no mercado.
A reestruturação da economia (macro e micro) desmonta velhos e conhecidos paradigmas; formas de organização do trabalho e a segurança do salário são postas em xeque. A competição do capital se acirra; a sua internacionalização se combina com a formação de blocos regionais (Mercosul, Nafta, União Européia). Empresas transnacionais integram suas operações com empresas locais, num processo de geração de complementaridade, racionalizando etapas de produção, tendo como objetivo a redução de custos, de desperdícios e de insumos. Ou seja, fatores objetivos e subjetivos do trabalho são economizados, enquanto a produtividade aumenta.
A globalização comercial e produtiva torna possível o aproveitamento das vantagens de cada país e cada região, com a especialização na produção de partes e subconjuntos do produto global. A globalização da produção e do comércio permite/requer a integração das economias, preservando uma hierarquia de poder a nível internacional e macroeconômico, enquanto reduz ou elimina a verticalização no nível microeconômico. Grandes, médias e pequenas empresas formam uma rede heterogênea de demandantes e ofertantes de bens e serviços, com diferenças de poder econômico e de posição estratégica de mercado.
Postos de trabalho são eliminados enquanto outros são criados; a horizontalização da produção e da gestão elimina hierarquias, equipamentos, qualificações etc. O mercado de trabalho se reestrutura, com novas demandas quantitativas e qualitativas de qualificação, de gênero, idade e etnia.
A integração da produção e de mercados, com novas formas de organização como a terceirização, o "kan-ban" e "just-in-time", onde a produção tem consumo garantido, aproxima-se de um planejamento global ideal, que poria fim à anarquia da produção capitalista. O desenvolvimento das forças produtivas cada vez mais adquire condições de eliminar a escassez e aponta para as possibilidades de se produzir riqueza suficiente para o suprimento das necessidades reais e imaginárias da maioria da população.
A classe trabalhadora organizada tem, portanto, o dever de discutir e encontrar formas de participar dos frutos produzidos pela reorganização econômica internacional.
O propósito deste artigo é justamente contribuir para a discussão sobre os novos desafios que o trabalho enfrenta no limiar do novo milênio e sobre as possibilidades de transformação social objetivamente criadas pelo próprio processo de desenvolvimento e crise do capital.

O Capital une o Centro e a Periferia

A exportação de capital dos países industrializados foi condição de expansão e sobrevivência do sistema capitalista. A industrialização de países como o Brasil já se deu como parte do processo de acumulação monopolista a nível internacional.
Centros secundários de acumulação se desenvolveram nas malhas do sistema financeiro internacional. Nos anos 70, países da América Latina, o Brasil especialmente, aproveitando-se do excesso de liquidez (petrodólares), tiveram acesso ao crédito internacional, que facilitou um esquema de acumulação baseado, contudo, na produção de setores tradicionais, com tecnologia ultrapassada, para um pequeno, porém dinâmico mercado interno.( :80)
Nos anos 80, a elevação da taxa de juros a nível internacional cria, para os países devedores dominados, o problema até hoje insolúvel da dívida externa.
Segundo Brunhoff, ( :16) nos anos 1981-82 a saída da crise deu-se por um acordo financeiro sob a vigilância do FMI, que impôs condições aos países endividados para pagamento das dívidas via "desinflação".
O combate à inflação se deu com políticas recessivas que, levando ao fechamento de empresas débeis e a políticas de contenção de custos naquelas que lideram o mercado, resultou em mudanças nas relações de trabalho, com a emergência de novos tipos de trabalhadores assalariados ou não e no aumento do número de desempregados, tanto nos países industrializados quanto na periferia do sistema
No Brasil a recessão, o relativo fechamento da economia e o baixo nível de investimento condicionaram a falta de inovação técnica no parque industrial. O desenvolvimento sustentado em empréstimos no mercado financeiro internacional atrelou a economia e a sociedade ao pagamento da dívida. Assim, sob o peso dos juros a pagar, as políticas econômicas adotadas esforçam-se por excedentes comerciais às custas dos trabalhadores
As empresas transnacionais que já dominavam o mercado tiveram um comportamento passivo. Embora aumentassem suas exportações, não investiram de forma a aumentar a produtividade. ( :565) Ao contrário, mantiveram baixos níveis de investimento e o relativo atraso tecnológico. Nos setores de alumínio, celulose e siderurgia, por exemplo, as transnacionais participaram para a ampliação relativa da produção, sobretudo da sua exportação. (cf.5:564)
As mesmas empresas que lideraram a economia nos anos 80 continuam a liderá-la nos anos 90. No setor automotriz, por exemplo, Volkswagen, Ford, Fiat, General Motors, etc continuam a dominar; nos sistemas de telecomunicações despontam: Siemens/Equitel, Ericson, NEC, etc. Na informática as líderes são também transnacionais: Xerox, IBM, Unysis. (idem)

O processo econômico subordinado aos ditames do imperialismo condiciona a crise fiscal do Estado, para cuja solução se apela para a contenção das despesas públicas, do crédito e da demanda. O resultado social desta política econômica é que a
milhões de desempregados, de sem-terra, sem-teto, sem-emprego e famintos somam-se milhões de trabalhadores com salários que mal lhes garante a sobrevivência.
O Estado intervém na economia através da contenção de salários e da subvenção do capital, demonstrando a existência de um novo estatismo, com nítida preferência pela rentabilidade capitalista, à diferença do Estado de bem-estar baseado na intervenção keynesiana.
Em relação aos salários vale salientar resultados de pesquisas do DIEESE: "entre 1986 e 1990, a perda dos rendimentos dos 10% mais pobres superou 45%, enquanto os rendimentos mais altos tiveram perdas significativas, mas nitidamente menores".( :30)
Em 1990 ainda 21,6% dos trabalhadores recebiam até 1 salário minimo. O percentual caiu em relação a 1985, quando era de 29,1% mas, mesmo assim, continua alto. No nordeste do país, o percentual caiu em igual período de 44,4% para 37,6%.( ) Deve-se salientar que o salário mínimo tem o valor atual de R$120,00 ou US$108,10.
De acordo com os princípios do neo-liberalismo, o estado brasileiro reduz sua intervenção no serviço público, como saúde e educação, enquanto aloca recursos para garantir a lucratividade do setor privado. Assim, enquanto em 1995 foram destinados 26 bilhões de dólares para o pagamento das dívidas externa e interna, apenas 6 bilhões foram gastos com saúde e educação. ( :28-29)
Em 1996, 13 bilhões de reais foram destinados ao salvamento de bancos privados através do PROER (Programa Especial de Recuperação do Sistema Financeiro) com a justificativa da necessidade de preservação da estabilidade do sistema financeiro. (cf. :20)
Enquanto a estatização de parte da dívida externa privada aumentou os gastos públicos, o ajuste recessivo da economia nos anos 80 reduziu a arrecadação tributária.
A redução dos investimentos públicos ainda se reflete na queda das inversões privadas, dado o caráter complementar entre ambas. ( :169)
O Estado brasileiro, que nos anos 50-70 acolheu o capital monopolista internacional oferecendo-lhe infra-estrutura, subsídios, isenções e incentivos, nos anos 90 participa das novas bases de acumulação, alienando o patrimônio público através de privatização.
A mudança na estrutura de acumulação dos países imperialistas como forma de superação de crises redefine o padrão de acumulação dos países do circuito dominado. A renúncia à proteção da produção e do mercado brasileiros contra o capital externo foi uma imposição objetiva da necessidade sentida pelo capital internacional de queimar etapas de produção, especializar-se nas atividades-fim e reorganizar-se de forma a reduzir todos os custos de produção.
Neste processo, as burguesias dos estados dominados seguem a determinação da política neoliberal ditada pelo FMI e pelo Banco Mundial: abrem seus mercados à concorrência internacional e reduzem os gastos com serviços públicos. FMI, Banco Mundial e outras instituições similares não são neutras, mas são dominadas pelas burguesias dos países imperialistas e representam, portanto, interesses de classes, inclusive os das burguesias latinoamericanas.

A inserção da economia brasileira na globalização pode ser observada através do aumento do coeficiente de exportação de commodities. Este passa de 5,5% em 1980 para 22,1% em 1992. Este comportamento da economia deve-se muito às transnacionais que dominam a produção local e, nos anos 90, tendem a preservar e modernizar o parque industrial.(cf.5:544)
Por outro lado, a política cambial contribuiu para o pouco desempenho das exportações. O crescimento das importações nos anos 90 faz parte do complexo causal da redução do emprego e da falência de muitas empresa locais. O saldo das transações de bens e serviços com exterior, inclusive o pagamento de juros, provocou crescimento expressivo do déficit em conta corrente que, na estimativa do DIEESE, deve ter superado a casa dos US$ 20 bilhões em 1996. ( :4) Já o déficit da balança comercial (exportações menos importações) foi contabilizado em UU$5,53 bilhões em 1996. (idem)
De acordo com Tavares e Gomes, com o aumento das importações o emprego cresceu apenas 0,4% de setembro de 1994 a maio de 1995. ( :33) No setor automotriz, entre 1989 e 1995, 30.000 postos de trabalho foram suprimidos, enquanto a produção física aumentou de 1,2 milhão para 1,7 milhão de unidades por ano. A produtividade passou de 9,5 para 15,7 veículos por trabalhador/ano. ( :10-11)
Com a política de estabilização da moeda iniciada em julho de 1994, a captação de recursos financeiros no exterior para aumentar as reservas nacionais aumenta a dívida pública e inviabiliza a redução do déficit. O capital internacional busca as vantagens de juros altos oferecidos no Brasil, mas pouco se interessa por sua inversão no sistema produtivo.

A concentração do capital internacional se agudiza, com a fusão de empresas monopolistas dos setores produtivo, financeiro, comercial e de serviços. As empresas que dominam o mercado/a produção de determinados produtos reservam para si as fases decisivas da produção, como o controle da tecnologia. No Brasil, as empresas sucumbem ao poder monopolista internacional e se submetem a parcerias subordinadas.
Para enfrentar a concentração do capital internacional, empresas nacionais também se agrupam, como forma de garantir sua sobrevivência e relativa indepedência dos juros do sistema financeiro. (cf.10:175)
Pesquisa realizada pelo IE/UNICAMP observou que, no caso brasileiro, em lugar das empresas investirem em novas capacidades de produção que lhes permitam manter a competitividade, no geral elas buscam redução de custos e melhoramento de qualidade por meio de alianças estratégicas com grandes empresas externas. A reestruturação produtiva à brasileira tem sido caracterizada pela estratégia de associação com grupos internacionais e também pela terceirização de parte de suas atividades para o mercado informal, onde a evasão fiscal e a prática de degradação das condições de trabalho garantem a manutenção de margens de lucro. (cf.10:187)
No Brasil, em lugar de mudanças na base técnica de produção das empresas, predominam as mudanças organizacionais. Em relação à reestruturação produtiva da indústria brasileira assim argumentou Vicente Paulo da Silva, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT):

"a marca mais característica da reestruturação produtiva no país é a predominância das inovações organizacionais e gerenciais. Ainda é pouco expressiva a incorporação das novas máquinas e equipamentos de base microeletrônica. Na maioria dos casos de reestrutração, as empresas alteram a organização da produção e do trabalho mantendo as mesmas máquinas e equipamentos." ( :14)

De acordo com Bielschwosky e Stumpo, técnicas de racionalização de gestão vêem sendo aplicadas em passos rápidos, tais como o controle de qualidade e a ISO 9000. As empresas transnacionais não têm insistido muito em mudanças na base técnica de produção devido à recessão, mas estão aumentando a produtividade. Só no período 1991-93, o aumento foi de 30%. (cf.5:566) A tecnologia de automação rígida introduzida nos anos 70 vem sendo preservada nos anos 90, permitindo a sobrevivência das empresas.
Para enfrentarem a competição externa, na maior parte das empresas nacionais a preocupação maior é com a liquidez e com a capacidade de autofinanciamento, às custas da debilidade tecnológica em relação às transnacionais.
Não obstante o cenário recessivo geral da economia, em alguns estados do Brasil muitas empresas estão conseguindo manter-se no mercado através de mudanças técnicas e organizacionais. Empresas do estado de Santa Catarina, por exemplo, estão buscando adaptar-se melhor às oscilações do mercado através de maior flexibilidade do volume de produção e de inovações. Citemos o DIEESE: "Algumas empresas já estão ligadas por computador ao comércio, o que resulta em um melhor fluxo de fornecimento de produtos, evita perdas e desperdícios e reduz a formação de estoques naquele setor".( :21)
Segundo Miranda, a tônica das empresas nacionais está numa maior aquisição externa de partes e menores esforços de engenharia de fábrica. Esta estratégia tende à concretização de um modelo organizacional de montagem de componentes importados, no lugar da fabricação doméstica integrada. (cf.10:123)
A pesquisa citada do IE/UNICAMP afirma, em relação à indústria eletrônica, que esta passou a sofrer com a competição externa e viu-se forçada a associar-se com empresas estrangeiras através de "joint-ventures". A Itautec, por exemplo, foi levada a racionalizar sua produção associando-se à IBM, Microsoft, INTEL e Canon. (apud 10:184)
A posição subordinada da economia brasileira no processo de globalização manifesta-se no "abandono das linhas de maior nível tecnológico em favor dos produtos mais padronizados". (apud 10:185)
A reestruturação produtiva internacional do capital no processo de globalização é necessariamente heterogênea e desigual. Enquanto a produção nos países imperialistas tende à flexibilização da base técnica, no Brasil persistem as fases de padronização baseadas em velhas tecnologias rígidas, mas necessárias à produção global/mundial. Na divisão internacional da produção, o Brasil se insere como importador de partes, peças e componentes para a montagem do produto final. (cf.10) As fases de pesquisa e desenvolvimento da tecnologia ficam à cargo das economias industrializadas.




Globalização e o Futuro do Trabalho


O padrão de acumulação do capital internacional até os anos 70 permitia a incorporação da classe operária dos países dominantes ao mercado consumidor. Com a reestruturação da economia, as lutas por aumentos salariais passaram a ceder espaços a concessões de diversos tipos, com objetivo de manutenção do emprego e do salário.
A microeletrônica revoluciona o sistema produtivo e as relações de produção, impedindo gradativamente a reprodução do trabalho assalariado. O mercado de trabalho se reduz e, para garantir a sobrevivência, nos países dominados, como o Brasil, o trabalho retoma formas não-capitalistas de produção, com o crescimento do que se convencionou chamar de "trabalho informal". No "mercado informal de trabalho" coexistem trabalho assalariado ilegal, isto é, precário, sem direitos trabalhistas, e trabalho "independente" não-assalariado.
De 1985 a 1995, os índices de trabalho assalariado formal/legal tiveram o seguinte comportamento, tendo o ano de 1985 como base, de acordo com dados do DIEESE ( ):

Ano 1985 1990 1991 1992 1995
Ïndice 100 121,2 114,9 112 108,8

Observa-se que de 1985 para 1990 há um aumento no emprego com Carteira de Trabalho assinada mas, a partir de 1991, o índice tende a cair. Por outro lado, os dados da mesma fonte indicam que o emprego sem carteira assinada (informal ou ilegal) também cresce. No mesmo período o crescimento é da ordem de 75,2%.
Em 1995, o trabalho assalariado sem proteção legal é maior do que o com proteção. Em janeiro de 1996, o trabalho informal/ilegal ou precário já tinha um índice de 177, enquanto o trabalho legal/formal tinha índice de 109,4, considerando-se o ano de 1985 como ano-base.


As Possibilidades contidas nas Contradições


As contradições objetivas do sistema capitalista estão cada vez mais visíveis. O trabalho morto toma o lugar do trabalho vivo, aumentando o contingente de desempregados, o que é hoje discutido como " processo de exclusão social". Esta contradição entre trabalho vivo e trabalho morto é um problema para o próprio capital, na medida em que a redução de salários e a concentração da renda impõem barreiras ao mercado consumidor, restringindo a possibilidade de realização da mercadoria. Contudo, já foi dito que o homem não se coloca problemas que não saiba resolver. A substituição do homem pela máquina restringe a possibilidade de extração da mais-valia e de produção de valor, acirrando a contradição entre valor e valor de uso. O capital cria, portanto, o seu próprio limite.
Objetivamente, considerando-se o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, estão dadas as condições de redução da jornada de trabalho, de supressão do trabalho assalariado, das misérias e necessidades. O aproveitamento dos incrementos de produtividade em prol da maioria torna-se possível.

Com o final das guerras de liberação nacional nos anos 70, e com a dissolução da URSS, posteriormente, os teóricos e ativistas de esquerda deixaram o imperialismo enquanto conceito econômico e sociológico à deriva. Nos anos 90, a vitória parcial do neoliberalismo faz emergir a discussão sobre a globalização descontextualizada da problemática das relações de classe. Hoje o motor da história se apresenta como um emaranhado de homens, mulheres e crianças numa luta desigual, sem saberem contra quem, para manterem a sua sobrevivência.
As transformações sociais neste final de século são complexas. Com o crescente processo de exclusão dos trabalhadores do mercado de trabalho e do direito à reprodução de suas vidas em condições compatíveis com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, a luta pela cidadania ofusca a questão de classe. As classes sociais ainda existem?
A cidadania diz respeito aos direitos e deveres que devem ser obedecidos para a manutenção da ordem na sociedade. Conforme afirma Gennari, "direitos de cidadão, são as palavras de ordem que unem empresários, presidentes, ministros e representantes de todos os movimentos organizados da sociedade civil".( :22)
A cidadania engloba numa única categoria indivíduos e grupos pertencentes a classes sociais distintas e que, portanto, gozam diferentes condições de vida e de trabalho. Portanto, devido às transformações ocorridas na estrutura social causadas pela reestruturação produtiva e seus impactos no mundo do trabalho, os cientistas sociais precisam atentar para as diferenças de classe e de interesses nos setores da sociedade afetados por estas transformações.
Apesar de não se poder negar a importância dos movimentos sociais dentro do quadro da luta geral dos trabalhadores, não se deve também perder de vista que a sociedade tem por base relações sociais mantidas entre capitalistas e trabalhadores, ambos cidadãos, e que ocupam posições bem definidas de exploradores e explorados. Os movimentos pela cidadania, ao enfatizarem a parceria e a solidariedade entre as classes sociais, dificultam na classe trabalhadora o desenvolvimento da consciência política. A este respeito vale a pena citar Gennari:
"Ao aceitar a cidadania como objetivo último de sua ação, os sindicatos e uma parcela significativa da esquerda brasileira, mais uma vez, deixam de fortalecer através da solidariedade a construção da identidade e do projeto das classes trabalhadoras e colocam em segundo plano o ataque aos mecanismos de exploração dos quais são vítimas no quotidiano das relações sociais. Pior, ao enfocar trabalhadores e capitalistas como simples cidadãos, como vontades e consciências cívicas livres e iguais perante a lei, contribuem para fazer desaparecer as marcas da dominação". (16)
A revolução no mundo do trabalho está acompanhada por uma maior fragmentação da classe trabalhadora, a nível internacional inclusive, contrariando a formação de um movimento operário internacional. Mesmo no interior da classe trabalhadora os diversos segmentos e grupos experimentam distintas condições de produção e reprodução material de suas vidas. A unidade de classe fica inclusive prejudicada pelas diferenças de gênero, de raça, de religião e de ideologia. ( :457)
Com a redução de postos de trabalho no mercado formal, os trabalhadores competem entre si para a garantia individual de emprego e renda. No setor privado, trabalhadores e sindicatos aceitam redução salarial para permanecerem no trabalho. Contudo, a propalada cooperação entre capital e trabalho fatalmente tem provocado a desvalorização da força de trabalho e o desemprego, às custas de maior fragmentação da classe trabalhadora.
Mesmo nas empresas que têm tido sucesso com o processo de reestruturação, à exemplo da indústria catarinense, os sindicatos têm sido mantidos alijados do processo. O DIEESE afirma: "Não foi detectada nenhuma organização sindical por local de trabalho onde as mudanças estão ocorrendo. A ação patronal nitidamente tem sido a de aproveitar o processo de reestruturação para esvaziar a ação sindical dos trabalhadores". (15:25)
Inclusive no setor público, a flexibilização das relações de trabalho tem produzido tensão na relação trabalho-trabalho. Nas universidades federais, por exemplo, servidores tecnico-administrativos e professores, desde o início dos anos 90 estão sendo divididos em temporários e permanentes. Os servidores temporários sofrem condições de trabalho inseguras e não recebem apoio dos permanentes para iniciarem a luta por melhores condições de trabalho. ( )
Enquanto os trabalhadores se dividem, o capital aumenta a sua solidariedade. A burguesia dependente, outrora dita nacional, está aliada ao capital internacional, na defesa de seu patrimônio e de seus interesses contra os trabalhadores.
À globalização da economia e à flexibilização do mercado de trabalho, lideranças sindicais e partidárias têm reagido com propostas de flexibilização de salários e direitos trabalhistas, ou seja, com concessões ao capital, na tentativa da preservação do emprego para os que ainda estão empregados.
O impacto das mudanças no mundo do trabalho tem sido pouco compreendido e a resistência por parte dos trabalhadores individuais e organizados é fraca. Parte da explicação se encontra no fato de que o desemprego e a informalização das relações de trabalho reduzem as fileiras do movimento sindical, deixando pouco protegidos os trabalhadores empregados e sem nenhuma proteção os desempregados. ( ) Parte da explicação está também nas concessões diferenciadas ao trabalho feitas individualmente pelas empresas de ponta às diversas categorias, dificultando a solidariedade entre seus segmentos. (cf.23)
Vários estudiosos (Sader, 1996; Oliveira, 1996;1997) têm analisado a fragmentação social que ocorre no mundo do trabalho e que dificulta a organização da resistência por parte da sociedade e do movimento sindical em particular.
No que diz respeito ao movimento sindical, os dados confirmam que nos anos 90 as greves são mais curtas e envolvem um número menor de trabalhadores. Segundo Pastore e Dallari,( :14) de 1989 a 1992, embora o número de desempregados da Grande São Paulo tenha triplicado, a quantidade de horas paradas em consequencia de greves reduziu-se em 10%.
De acordo com o DIEESE ( ) em 1995 também reduziu-se o número de paralizações. As categorias mais mobilizadas foram a dos servidores públicos. Os professores estaduais de São Paulo foram os que, com 180.000 grevistas, mobilizaram o maior número de grevistas do ano. 28% das greves tiveram o pagamento de salários atrasados como principal reivindicação.
Conforme argumenta Klein, a relativamente pouca mobilização grevista pós-94 é também explicada pelo fato de, sendo baixos os índices salariais reivindicados, devido à estabilização monetária, "é difícil sustentar greves longas já que o desconto dos salários pelos dias parados acabaria devorando possíveis ganhos". ( :3)
Parece evidente para muitos críticos que as lutas sindicais e economicistas hoje estão se mostrando cada vez mais ineficazes ( :21) e que as lideranças têm priorizado a via institucional e projetos reformistas, deixando em segundo plano a organização da luta dos trabalhadores.
Não obstante a crise no movimento sindical e popular, ( ) não se pode ignorar as manifestações de desempregados do campo e da cidade, dos sem-terra e dos sem-teto, de professores e outras categorias de funcionários públicos. Estas manifestações, muitas inclusive espontâneas, poderão, com a ajuda de lideranças conscientes e determinadas, ser transformadas num amplo movimento popular que lute por transformações na sociedade. Assim, a longo prazo, os diversos movimentos sociais, junto com partidos políticos e sindicatos, num movimento contraditório, precisam questionar o próprio mercado de trabalho enquanto momento de compra e venda da força de trabalho e instituição de alocação e redistribuição de renda. Isto é necessário porque a força de trabalho e seu dono, o cidadão trabalhador, somente terá chances de desenvolver-se plenamente fora da condição de mercadoria.
As lideranças intelectual, sindical e partidária que se preocupam com o destino dos trabalhadores precisam rever e elaborar teorias ou paradigmas teóricos capazes de indicar rumos à sociedade. Se a globalização da economia tem a capacidade de reduzir custos e aumentar a eficiência da produção a nível internacional, se a flexibilização, de par com a automação, consegue reduzir o contingente de trabalhadores necessários àprodução, será que a contradição entre forças produtivas e relações sociais de produção não deixa vislumbrar nenhuma possibilidade de que a maioria da sociedade possa se beneficiar de todo este processo? Será que o aumento do desemprego, um problema que atinge todo o mundo capitalista, só pode ser resolvido com a expansão do mercado de trabalho? Por que lutar por mercado (de trabalho) em lugar de lutar para acabar com a exploração do trabalho assalariado? Por que na~o lutar para se conseguir o desenvolvimento pleno do trabalhador e de sua força de trabalho fora da condição de mercadoria (fictícia)?
A história de erros cometidos nos países onde se tentou, em nome dos trabalhadores, construir uma sociedade sem exploração e opressão, deve ser por nós estudada, para delas tirarmos lições positivas.
Responder estas indagações é tarefa das lideranças que querem encontrar soluções para o equacionamento dos problemas sociais que afligem a sociedade, em particular os trabalhadores, nesta virada do século.
As soluções, com certeza, serão encontradas, não para os trabalhadores, mas junto com eles, na árdua tarefa de formação política, que envolve a luta diária contra a corrente neoliberal e contra as receitas políticas que desconsideram situações históricas específicas.



Graziela Oliveira

 

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