I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 


Sociedades Anónimas: Regulação e Economia

A lei de 22 de Junho de 1867 estabeleceu em Portugal a regulamentação jurídica da natureza, designação, constituição, liquidação, dissolução e administração das Sociedades Anónomas e ocupou-se também do estabelecimento jurídico em Portugal de sociedades anónimas domiciliadas em país estrangeiro.
Doravante a laboração no país destas sociedades anónimas estrangeiras dependia do deferimento do respectivo pedido de autorização por elas apresentado junto do Ministério das Obras Públicas Comércio e Indústria. (A análise destes processos, disponíveis no Arquivo Histórico deste ministério, revela mesmo a tramitação burocrática a que foram sujeitas numa época de globalização e portanto de generalização dos investimentos estrangeiros).
O estabelecimento de regras dentro das quais deve decorrer a actividade dos agentes económicos e seus negócios constitui uma faceta muito particular da actuação do Estado liberal português num papel regulador que não dispensa exercer criando um contexto jurídico-político novo através de uma generalizada codificação (citem-se a lei de regulação das sociedades cooperativas, o código civil português e o código penal).
1. A lei de 22 de Junho de 1867.

A lei de 22 de Junho de 1867 estabeleceu em Portugal a regulamentação jurídica da natureza, designação, constituição, liquidação, dissolução e administração das Sociedades Anónomas e ocupou-se também do estabelecimento jurídico em Portugal de sociedades anónimas domiciliadas em país estrangeiro.
Estipulou para tanto que, sob pena de nulidade , cada sociedade anónima deveria escolher para si uma designação, precedida ou seguida das palavras Sociedade Anónima, Responsabilidade Limitada, que fosse indiciadora da actividade a que se dedicava e dos fins a que se destinava e que ao mesmo tempo fosse inteiramente distinta da usada por qualquer outra, por forma a poderem evitar-se denominações idênticas ou parecidas que pudessem gerar confusão ou induzir a erro. E para que assim fosse, qualquer documento emanado da sociedade anónima deveria mencionar a sua designação completa .
Desta forma tentava evitar-se a fraude no que respeita à simulação de sociedades ou à confusão entre sociedades, por desconhecimento do seu domicílio.
Por estas regras gerais a que todas as sociedades anónimas obedeceriam assegurava-se a sua inconfundível identificação para efeitos de responsabilização legal pelos seus actos. Requeria-se também toda a clareza quanto às finalidades a que se destinavam, isto é, exigia-se que fosse do conhecimento público a definição do seu "negócio".
Até à publicação da lei de 22 de Junho de 1867 as associações de capitais com responsabilidade limitada para os seus accionistas eram designadas em Portugal pela expressão Companhias de Comércio que lhes tinha sido atribuida pelo Código Comercial Português de 1833 .
No Código Comercial já estava consignada a principal característica destas associações de accionistas, que era dada pelo facto de a responsabilidade dos fornecedores de fundos não ir além das perdas dos montantes de capital que houvessem subscrito em acções. Entendia-se que resultava daí a necessidade de se pedir uma autorização ao governo todas as vezes que se quisesse fundar uma empresa deste tipo, uma vez que a limitação da responsabilidade dos associados era vista como uma excepção à lei geral, devendo para tanto o governo aprovar também os estatutos por que se regesse cada uma destas empresas especialmente autorizadas.
Isto é, a preocupação subjacente no Código Comercial no que respeita a esta matéria era o entendimento de que competia ao Estado proteger os súbditos do perigo de entregarem fundos (por subscrição de acções) a sociedades anónimas cujas administrações viessem a declarar falências e a fazer desaparecer os capitais recebidos.
Ao mesmo tempo é certo que não havia disposições legais detalhadas sobre o seu funcionamento .
A lei de 22 de Junho de 1867 libertou a fundação destas empresas da necessidade de uma autorização especial por parte do governo, deixando-a ao cuidado da iniciativa dos agentes económicos particulares e do seu interesse pelo princípio associacionista dos seus capitais. Dizia a lei expressamente: "As sociedades anonymas constituem-se pela simples vontade dos associados, sem dependencia de previa auctorisação administrativa e approvação dos seus estatutos" .
O único requisito a cumprir pelas sociedades a constituir consistia na necessidade de elaboração de estatutos para elas, obrigatoriamente outorgados em escritura pública, registados no Registo Público do Comércio e promulgados por conta das mesmas sociedades no Diário Oficial do Governo , de acordo com princípios gerais enunciados no texto da lei. Da mesma maneira, tornava-se obrigatório o registo de dissolução e a publicação no diário oficial do acto de dissolução.
Havia contudo alguns princípios gerais. De entre esses princípios gerais sublinhe-se o limite mínimo de dez sócios para a fundação da sociedade anónima, a expressão nos estatutos da localização do domicílio, da duração da sociedade, da forma de organização da administração e do montante do seu capital social. Era também imposta a necessidade de subscrição integral do capital, com pagamento e depósito em entidade bancária de pelo menos 5% do seu total (ou da sua primeira série, no caso de o contrato social estipular e emissão do capital por séries, as quais contudo nunca poderiam ser mais do que cinco, abrindo-se apenas a emissão de cada série subsequente depois que estivesse pago 75% do capital da série anterior).
Tratava-se sem dúvida de uma nova filosofia económica. A uma situação de dependência de autorização governativa caso a caso sucedia agora um novo contexto de liberdade de constituição e de funcionamento, desde que fosse respeitado pelos estatutos um conjunto de regras que a mesma lei de 22 de Junho de 1867 prescrevia e que constituíam doravante um quadro jurídico novo das sociedades anónimas portuguesas.
A lei é ainda explícita quanto às regras para a transmissão da propriedade das acções: A simples tradição para as acções ao portador e a cessão regulada pelo direito geral para as acções nominativas, não podendo ser negociáveis senão depois da constituição da sociedade e do pagamento de pelo menos 10% do seu valor nominal. Obrigava-se também a sede da sociedade anónima a manter um registo actualizado dos nomes dos primeiros subscritores de capital social, das transferências e transmissões de acções, da conversão de acções nominativas para acções ao portador e do pagamento das prestações, proibindo que houvesse divisibilidade de uma acção: Só se admite um proprietário para cada acção.
Relativamente à administração das sociedades anónimas, a lei remete para os estatutos da sociedade a definição das atribuições dentro da administração, a duração dos mandatos, as regras para a reeleição e o modo como suprir impedimentos temporários, bem como a forma de constituição das assembleias gerais. Também a definição do número de votos por accionista, o enunciado das regras de representação de accionistas ausentes e a fixação do número de votos requerido para determinadas deliberações ficaria determinado na redacção dos estatutos. É também deixada aos estatutos a definição da constituição especial de assembleias gerais para assuntos como o aumento de capital, a alteração dos próprios estatutos, a dissolução da sociedade ou a sua liquidação.
Mas a lei é taxativa no que respeita à perda de mandato sempre que cesse a qualidade de accionista, ao papel fiscalizador da administração da sociedade por parte do seu conselho fiscal e à necessidade de emissão do seu parecer sobre o balanço ou inventário do passivo e do activo, sobre a conta corrente de perdas e ganhos e sobre o relatório da situação comercial, financeira e económica. Só após quinze dias de exposição na sede da sociedade de todos estes elementos bem como da lista geral de accionistas poderiam tais documentos ser aprovados em assembleia geral, convocada com a maior publicidade possível em jornais e por carta dirigida a todos os possuidores de acções nominativas. No caso de não funcionamento da assembleia geral por falta de número de accionistas ficava prescrita a necessidade de convocatória para nova reunião, a realizar dentro de trinta dias mas não antes de quinze.
Queria pôr-se cobro à ignorância da situação comercial, financeira e económica das sociedades, à falsificação de documentos emanados, ou à manipulação das assembleias gerais, bem como à possibilidade de uma gestão enganosa ou fraudulenta.
Já no que respeita à distribuição de lucros, a lei limita-se a referir a existência de um fundo de reserva alimentado por uma parte deles até à décima parte do capital social, proíbe os estatutos de estipularem lucros certos para os accionistas e considera violação de mandato a distribuição de dividendos fictícios pelos mandatários. É considerada obrigatória a publicação no diário oficial do governo do balanço, da conta corrente de perdas e ganhos, do relatório da situação comercial, financeira e económica e do parecer do conselho fiscal, depois de discutidos em assembleia geral.
Para efeitos de dissolução da sociedade estabelece como razão suficiente que a sociedade esteja em funcionamento por mais de seis meses com um número de associados inferior a dez. A deliberação de dissolução pode também ser tomada em assembleia geral em virtude de perda de metade do capital e por maioria de votos. Para uma perda de 3/4 do capital bastariam 1/4 dos votos. Em caso de dissolução salvaguardava-se a existência jurídica da sociedade, mas unicamente para efeitos da sua liquidação, a qual está necessariamente regulada pelos estatutos ou, em caso contrário, sê-lo-á pela assembleia geral, podendo também regular-se pelo direito comercial .
Para efeitos de declaração de falência a lei previu o respectivo requerimento por parte de um ou mais credores num quadro de cessação de pagamentos.




2. As sociedades anónimas estrangeiras.

A lei de 22 de Junho de 1867 ocupou-se também das sociedades anónimas estrangeiras que quisessem laborar em Portugal, exigindo neste caso a necessidade de aprovação pelo governo, caso a caso.
Elas teriam de possuir existência jurídica no país, e para tal precisavam de demonstrar que estavam legalmente constituidas ou domiciliadas em país estrangeiro, que estavam em funcionamento nesse país e em plena actividade de negócios de acordo com as leis próprias e específicas desse país, e que os seus fins não eram contrários aos interesses públicos.
Mais, a lei exigiu-lhes a declaração de que se sujeitariam às leis e tribunais portugueses em todas as questões derivadas de transacções ou operações que fizessem em Portugal e que respeitariam as leis civis, comerciais, administrativas e fiscais do nosso país. Ficavam assim sujeitas, na proporção dos negócios que efectuassem em Portugal, a todas as contribuições e impostos a que estavam obrigadas as sociedades portuguesas de igual natureza.
Também os indivíduos declarados como seus mandatários e seus legítimos representantes em Portugal se tornavam investidos dos mesmos poderes e atribuições dos mandatários (directores e administradores) das sociedades portuguesas. Usariam a língua portuguesa nas apólices e em todos os contratos, mesmo quando se tratasse de sociedades dedicadas a operações de seguros (marítimos, terrestres ou de vida).
Caberia ao Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria a verificação do cumprimento de todas as condições requeridas, não podendo nenhuma sociedade anónima estrangeira funcionar no país sem esta prévia verificação, incluindo todas aquelas que estavam já a funcionando em Portugal à data da lei. Também essas se viam agora obrigadas a regularizar no prazo de seis meses o seu exercício no país, reformando e publicando os seus estatutos na folha oficial, sob pena de cessação ipso jure da sua legitimidade jurídica entre nós.


3. Excepções criadas.

Há a registar no articulado da lei de 22 de Junho de 1867 o enunciado de algumas preocupações especiais.
Por exemplo, continuou sujeita à necessidade de obtenção de autorização por parte do governo a fundação de sociedades anónimas, portuguesas ou estrangeiras, "cujo fim fosse a aquisição de imóveis para os conservar no seu domínio e posse por mais de dez anos" .
Um segundo exemplo é o da abertura de uma excepção às Sociedades Anónimas de Seguros relativamente à impossibilidade geral de abertura de emissão de capital em novas séries subsequentes senão depois que estivesse pago 75% do capital da série anterior.
Ficavam isentas das regras gerais enunciadas para as sociedades estrangeiras, as que fossem de navegação e tivessem nos nossos portos, incluindo os nossos domínios coloniais, agências "para a expedição dos negócios relativos ao serviço dos seus navios nos pontos de escala".


4. Outra legislação.

A lei de 22 de Junho de 1867 para as Sociedades Anónimas de Responsabilidade Limitada não foi um marco legislativo isolado, sob o ponto de vista dos aspectos económicos, pois foi precedida pela lei de 2 de Junho de 1867 através da qual foram também reguladas em Portugal as sociedades cooperativas.
Por outro lado, este ano de 1867 foi também assinalado pelo esforço de uma codificação geral para o país, o Código Penal e o Código Civil , aspecto muito relevante para efeitos da sociedade civil e das próprias actividades económicas, não só porque a definição dos aspectos penais abrange os crimes de natureza económica, mas também porque os aspectos de transmissão de propriedade se prendem naturalmente com o sistema de heranças, com a definição de filiação e com o próprio casamento.


5. O significado do novo traçado jurídico.

De acordo com o relato da discussão deste diploma nas Côrtes o projecto de lei foi aprovado sem acesas discussões sempre com o pressuposto de que "Os poderes do estado devem salvaguardar (...) os capitaes que o publico confia n'estas companhias" .
Na Câmara dos Pares diz a acta da sessão que"não foi objecto de especial discussão, mórmente em presença dos luminosos relatórios feitos pelo governo e pelas comissões da camara dos senhores deputados" e foi aprovado na generalidade "sem que sobre elle se fizessem reflexões algumas" .
O entendimento na época do significado económico desta lei era portanto consensual e consistia em se sublinhar a independência de que doravante gozavam as sociedades anónimas constituidas em Portugal em relação ao poder político, uma vez que a lei as libertava da necessidade de uma autorização governamental para existirem e da possibilidade de se verem dissolvidas pelo estado:

"O fundamento do parecer para a approvação do projecto de lei em referencia ás sociedades anonymas é a necessidade de emancipar estas sociedades da tutela preventiva e repressiva do ministerio das obras publicas commercio e industria, assim na constituição como na dissolução das mesmas sociedades, contendo o projecto o artº 58º, o qual muito coarcta o poder do governo sobre as ditas sociedades anonymas, apesar de lhe permitir poder intentar uma acção judicial contra as sociedades que não preencham as disposições da lei.
A auctoridade pois do governo fica muito mais limitada do que está actualmente, porque o governo, ouvidos os seus conselheiros, podia dissolver qualquer sociedade, como aconteceu com a companhia das aguas e a companhia união mercantil" .

O alcance económico da lei, porém, é muito mais abrangente se o considerarmos no contexto dos seus efeitos sobre a sociedade civil.
No século XIX tornou-se habitual distinguir entre a sociedade civil e o Estado. Desde que o Estado se personificou segundo o modelo moderno de estado-nação isso constituiu um tremendo factor para esta distinção . Na sociedade civil podem considerar-se vários elementos, como a 'esfera política' e a 'esfera económica', e nesta podem citar-se instituições decisivas como as relações inter-pessoais, a divisão social do trabalho, as trocas em mercado competitivo e a confiança.
Como é fácil compreender, o estudo da sociedade civil requer que se considerem as restrições formais e informais que operam no seu funcionamento. E relativamente às restrições formais, a legislação sobre propriedade, a legislação sobre a família e a lei comercial (ou leis sobre contratos), assumem um enorme papel pela influência que exercem sobre as actividades económicas .
É o Direito e as suas leis que definem o sistema económico ao estabelecerem as regras dentro das quais os indivíduos como agentes económicos e as suas organizações vão trabalhar e operar. Os efeitos de uma dada lei irão depender do restante contexto jurídico geral onde a sua definição se insere, mas ao estabelecê-la é sempre possível que estejam presentes preocupações de justiça social, por um lado , ou preocupações com a eficiência, por outro lado.
Por sua vez, a confiança não é a instituição menos relevante dentro da sociedade civil, pois baseia os contratos entre os homens e a sua respeitabilidade. E se na Idade Média a fé cristã podia sedimentar a respeitabilidade dos contratos, nas sociedades contemporâneas a confiança advém sobretudo da possibilidade de tornar compulsivos os comportamentos.
Ora a intensificação das trocas no contexto do comércio internacional e sobretudo os movimentos internacionais de capitais no contexto do investimento estrangeiro tornaram indispensável a existência de confiança. E não é mais possível pensá-la apenas no contexto das comunidades locais, pois, pelo contrário, ela tem a ver sobretudo com o aumento das distâncias e com a ausência de uma soberania territorial global. Neste sentido, o comércio internacional e o seu grande crescimento ao longo do século XIX e particularmente na sua segunda metade, criou as noções de mercado mundial e de sociedade civil internacional, no contexto da qual cada cidade é uma cidade do mundo e não uma cidade de determinado estado nacional. Tal como o comércio internacional foi factor de estímulo ao nascimento de um sistema monetário internacional eficiente e geral - o padrão-ouro, também o movimento internacional de capitais foi gerador da necessidade de criação da confiança à escala universal dos mercados com garantias de cumprimento das obrigações assumidas .

Numa perspectiva de tipo utilitarista, por exemplo, a protecção legal dos direitos de propriedade tem um efeito de incentivo ao uso eficiente dos recursos disponíveis: A criação de direitos exclusivos pode não ser propriamente condição suficiente para a afectação eficiente dos recursos disponíveis, mas ela é pelo menos uma condição necessária.
Quando porém uma coisa é propriedade de mais de uma pessoa, a lei tem de regular os aspectos relativos à propriedade comum, como facilmente se compreende. Ora, as sociedades por acções são um bom exemplo desta situação. Na verdade elas representam um conjunto de relações consensuais entre accionistas, credores e gestores, cristalizadas numa teia de contratos. A maior parte dos contratos são explícitos, outros são implícitos, e fundamentam-se na lei, definindo direitos e obrigações para todos e estabelecendo sobretudo como devem ser geridas estas empresas e como devem ser divididos os seus frutos.
Neste contexto a principal finalidade de uma lei sobre as sociedades anónimas consiste em facilitar o traçado dos contratos ao estabelecer por defeito uma série de regras gerais. Por exemplo, o objectivo dos administradores e gestores de obterem no mercado a máxima cotação das acções da sociedade implica que haja nos estatutos o fornecimento de informação clara àcerca dos seus cuidados e deveres de lealdade, àcerca do direito de voto dos accionistas ou àcerca das regras de divisão dos dividendos.
Por sua vez a competitividade no mercado de capitais selecciona os termos contratuais das sociedades que melhor funcionaram e que por isso foram mais bem sucedidas, num processo de selecção quase Darwinista . Os termos contratuais que se revelam eficientes são os imitados, os demais são abandonados.
Não admira por isso que a redacção dos estatutos e os termos contratuais passem a ser muito semelhantes. E há vantagens para a sociedade civil com este processo, dado o pressuposto de que o que é óptimo para a empresa é óptimo para a sociedade civil porque maximiza a riqueza social. Reconhece-se hoje que quantas mais empresas adoptarem estes termos contratuais, maior é o benefício geral pela criação de externalidades geradas numa espécie de efeito de aprendizagem: A interpretação das regras torna-se mais clara, os procedimentos e as interpretações judiciais que possam vir a ser necessários conseguem tornar-se mais uniformes.
Da mesma maneira, a eficiência económica requer que os direitos de propriedade sejam transmissíveis havendo que fazer-se a definição da sua transmissão.
Como porém os direitos de propriedade acarretam custos para se fazerem cumprir, a regulação deve interpretar-se como uma forma de equacionar a divergência entre benefícios sociais e custos sociais. Não admira assim que os direitos de propriedade, por acarretarem custos para se fazerem cumprir, sejam mais extensivos nas sociedades modernas do que nas do passado, pois eles tendem a ser cada vez mais específicos à medida que cresce a proporção entre as vantagens sociais que resultam da sua definição e os custos em que a sociedade incorre para os fazer cumprir.
Esta avaliação de tipo custo-benefício cabe, naturalmente, ao Estado, aos seus políticos e burocratas, isto é, ao seu aparelho. Pode interpretar-se a vaga legisladora que ocorreu na segunda metade do século XIX em todos os estados nacionais europeus e também em Portugal como uma concretização deste entendimento por parte dos poderes públicos constituidos.

O significado da lei de 22 de Junho de 1867 deve interpretar-se neste contexto como uma tentativa para a definição estratégica do que é uma empresa privada do tipo "Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada" e das regras do seu funcionamento dentro da sociedade civil em que se inserem, a sociedade portuguesa oitocentista. É uma espécie de resposta que foi dada ao desafio colocado ao legislador da época para uma definição deste tipo de empresa enquanto instituição a operar dentro do sistema económico e social.
A sociedade civil portuguesa da segunda metade do século 19 pôde assim colher todas as vantagens que decorrem da promulgação de uma lei das sociedades anónimas. Estas vantagens terão sido tanto mais significativas quanto maior foi a uniformidade relativa ou semelhança dos estatutos redigidos, quanto maior o número de sectores industriais e comerciais abrangidos e quanto maior foi a dispersão geográfica e quanto mais semelhantes os princípios gerais adoptados nas leis nacionais sobre sociedades anónimas, por haver externalidades positivas com o aumento de unidades em rede.
Por isso mesmo a contemplação na lei do caso de sociedades anónimas estrangeiras tem grande relevância por aumentar o raio geográfico da similitude de procedimentos e de regras. Aliás, a lei obrigava-as exactamente à obediência das mesmas leis que às sociedades constituidas em Portugal. A difusão das relações económicas com o resto do mundo acarretou também a necessidade de interacção entre os estados para que fosse possível criar confiança aos agentes económicos no contexto da teia dos contratos internacionalmente assumidos.


5. A lei como expressão de interesses gerais e particulares.

Pelo que fica dito pode afirmar-se, como conclusão, que o legislador ao estabelecer por defeito uma série de regras de funcionamento das sociedades anónimas contribuiu portanto para a minimização dos custos de transacção e a maximização do bem-estar social.
Não pode esquecer-se também a existência de grupos de pressão no que respeita à definição dos aspectos jurídicos, pois a divergência de interesses pode acarretar a ocorrência de conflitos ou até disputas entre as instituições que já estão instaladas, por exemplo, e as que pretendem vir a operar.
O enunciado de excepções às regras gerais do articulado da lei das sociedades anónimas, nomeadamente de tipo sectorial, poderá ter correspondido à contemplação de especificidades inerentes a estes sectores ou ainda a cedências do legislador perante pressões e interesses manifestados.
Não admirará que se não exija pedido de autorização de funcionamento para as empresas de navegação que já tivessem agências nos nossos portos do reino ou das colónias. São empresas com negócio bem definido e conhecidas do público em geral, não se colocando receios relativamente a estes aspectos. Boa parte delas publicava mesmo com frequência anúncios na imprensa relativamente aos destinos e às datas das partidas mais próximas, publicitando os serviços que prestavam. E tinha havido sempre no passado uma preocupação tradicional por parte das autoridades governamentais em ver asseguradas as carreiras para o Brasil. Muitos destes negócios estavam representados na Associação Comercial de Lisboa e incluíam também interesses no sector da importação e exportação.
Por esta altura a preocupação dominante era a de ver asseguradas as ligações com as costas africanas. Por outro lado estas companhias estrangeiras usavam não só a navegação à vela mas também e cada vez mais a navegação a vapor, tecnologicamente superior e mais confortável para o transporte de passageiros. A participação de capitais portugueses no sector da navegação à vela viria a alargar-se a este tipo de companhias.

Porém, em matéria de aprovação do projecto de lei a maior preocupação à data era a da necessidade de que houvesse isenção no comportamento dos membros do poder judicial. Não deveria haver sobreposição de interesses por parte dos magistrados quando fossem chamados a julgar processos relativos às sociedades anónimas. Na Câmara dos Pares, o Visconde de Fonte Arcada lembrava:

"(...) o facto é que hoje a cada passo se vêem os juizes de direito de 1ª e 2ª instancia, conselheiros do tribunal supremo de justiça, accionistas dos diversos bancos e companhias, a julgarem causas d'essas mesmas companhias e bancos, em cujo vencimento elles têem interesse directo, membros do poder judicial, do legislativo e do poder executivo e dos tribunaes administrativos, a serem não só accionistas, mas directores, presidentes e governadores de taes estabelecimentos, exercendo cumulativamente funções tão oppostas."
(...)
"Segundo o meu modo de ver, o governo fica muito pouco armado em virtude do que dispõe o artº 58º e o seu § porque, precisando intentar contra qualquer companhia uma acção, póde vir a dar-se a circumstancia de vir a ser julgada por directores da mesma companhia contra quem o governo intentar acção, visto que o alvará de 5 de Janeiro prohibe que os juizes possam ser dados por suspeitos nas causas das companhias em que forem interessados""

Convém sublinhar que a Câmara não encontrou maneira de contornar este problema dos interesses particulares de accionistas por as sociedades anónimas serem por sua natureza anónimas . Com efeito, as acções ao portador não têm proprietário por sua definição própria e correm de mão em mão por simples aquisição. As acções nominativas, ao poderem ser transmitidas por endosso em branco podem permanecer também incógnitas escapando a qualquer acção proibitiva . Como reconhecem os juristas, a sociedade anónima "é a típica sociedade de capitais" . Por isso a votação aprovou o texto do projecto sem qualquer correcção.

Também a tomada de decisões por parte da burocracia no que respeita por exemplo à autorização de funcionamento caso a caso (como acontecia antes da lei de 22 de Julho de 1867 para todas as 'Companhias' e como continuou a acontecer com as sociedades anónimas estrangeiras) é uma hipótese a considerar e que requer evidência empírica a partir do uso de fontes históricas que possam documentar a existência de tais pressões.
O papel que teve nestas decisões o uso de informação estatística por parte da burocracia e a posse de opiniões próprias tecnicamente fundamentadas são aspectos que importará também aferir, nomeadamente no contexto, no caso português em estudo, do Ministério das Obras Públicas Comércio e Indústria, criado em 1852, pois lhe competia a tomada destas decisões. Será programa para a continuação da pesquisa.

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Maria Eugénia Mata - Docente da FEUNL

 

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