A lei de 22 de Junho de 1867 estabeleceu em
Portugal a regulamentação jurídica da natureza, designação,
constituição, liquidação, dissolução e administração das
Sociedades Anónomas e ocupou-se também do estabelecimento
jurídico em Portugal de sociedades anónimas domiciliadas em
país estrangeiro.
Doravante a laboração no país destas sociedades anónimas
estrangeiras dependia do deferimento do respectivo pedido de
autorização por elas apresentado junto do Ministério das Obras
Públicas Comércio e Indústria. (A análise destes processos,
disponíveis no Arquivo Histórico deste ministério, revela
mesmo a tramitação burocrática a que foram sujeitas numa
época de globalização e portanto de generalização dos
investimentos estrangeiros).
O estabelecimento de regras dentro das quais deve decorrer a
actividade dos agentes económicos e seus negócios constitui uma
faceta muito particular da actuação do Estado liberal
português num papel regulador que não dispensa exercer criando
um contexto jurídico-político novo através de uma generalizada
codificação (citem-se a lei de regulação das sociedades
cooperativas, o código civil português e o código penal).
1. A lei de 22 de Junho de 1867.
A lei de 22 de Junho de 1867 estabeleceu em Portugal a
regulamentação jurídica da natureza, designação,
constituição, liquidação, dissolução e administração das
Sociedades Anónomas e ocupou-se também do estabelecimento
jurídico em Portugal de sociedades anónimas domiciliadas em
país estrangeiro.
Estipulou para tanto que, sob pena de nulidade , cada sociedade
anónima deveria escolher para si uma designação, precedida ou
seguida das palavras Sociedade Anónima, Responsabilidade
Limitada, que fosse indiciadora da actividade a que se dedicava e
dos fins a que se destinava e que ao mesmo tempo fosse
inteiramente distinta da usada por qualquer outra, por forma a
poderem evitar-se denominações idênticas ou parecidas que
pudessem gerar confusão ou induzir a erro. E para que assim
fosse, qualquer documento emanado da sociedade anónima deveria
mencionar a sua designação completa .
Desta forma tentava evitar-se a fraude no que respeita à
simulação de sociedades ou à confusão entre sociedades, por
desconhecimento do seu domicílio.
Por estas regras gerais a que todas as sociedades anónimas
obedeceriam assegurava-se a sua inconfundível identificação
para efeitos de responsabilização legal pelos seus actos.
Requeria-se também toda a clareza quanto às finalidades a que
se destinavam, isto é, exigia-se que fosse do conhecimento
público a definição do seu "negócio".
Até à publicação da lei de 22 de Junho de 1867 as
associações de capitais com responsabilidade limitada para os
seus accionistas eram designadas em Portugal pela expressão
Companhias de Comércio que lhes tinha sido atribuida pelo
Código Comercial Português de 1833 .
No Código Comercial já estava consignada a principal
característica destas associações de accionistas, que era dada
pelo facto de a responsabilidade dos fornecedores de fundos não
ir além das perdas dos montantes de capital que houvessem
subscrito em acções. Entendia-se que resultava daí a
necessidade de se pedir uma autorização ao governo todas as
vezes que se quisesse fundar uma empresa deste tipo, uma vez que
a limitação da responsabilidade dos associados era vista como
uma excepção à lei geral, devendo para tanto o governo aprovar
também os estatutos por que se regesse cada uma destas empresas
especialmente autorizadas.
Isto é, a preocupação subjacente no Código Comercial no que
respeita a esta matéria era o entendimento de que competia ao
Estado proteger os súbditos do perigo de entregarem fundos (por
subscrição de acções) a sociedades anónimas cujas
administrações viessem a declarar falências e a fazer
desaparecer os capitais recebidos.
Ao mesmo tempo é certo que não havia disposições legais
detalhadas sobre o seu funcionamento .
A lei de 22 de Junho de 1867 libertou a fundação destas
empresas da necessidade de uma autorização especial por parte
do governo, deixando-a ao cuidado da iniciativa dos agentes
económicos particulares e do seu interesse pelo princípio
associacionista dos seus capitais. Dizia a lei expressamente:
"As sociedades anonymas constituem-se pela simples vontade
dos associados, sem dependencia de previa auctorisação
administrativa e approvação dos seus estatutos" .
O único requisito a cumprir pelas sociedades a constituir
consistia na necessidade de elaboração de estatutos para elas,
obrigatoriamente outorgados em escritura pública, registados no
Registo Público do Comércio e promulgados por conta das mesmas
sociedades no Diário Oficial do Governo , de acordo com
princípios gerais enunciados no texto da lei. Da mesma maneira,
tornava-se obrigatório o registo de dissolução e a
publicação no diário oficial do acto de dissolução.
Havia contudo alguns princípios gerais. De entre esses
princípios gerais sublinhe-se o limite mínimo de dez sócios
para a fundação da sociedade anónima, a expressão nos
estatutos da localização do domicílio, da duração da
sociedade, da forma de organização da administração e do
montante do seu capital social. Era também imposta a necessidade
de subscrição integral do capital, com pagamento e depósito em
entidade bancária de pelo menos 5% do seu total (ou da sua
primeira série, no caso de o contrato social estipular e
emissão do capital por séries, as quais contudo nunca poderiam
ser mais do que cinco, abrindo-se apenas a emissão de cada
série subsequente depois que estivesse pago 75% do capital da
série anterior).
Tratava-se sem dúvida de uma nova filosofia económica. A uma
situação de dependência de autorização governativa caso a
caso sucedia agora um novo contexto de liberdade de
constituição e de funcionamento, desde que fosse respeitado
pelos estatutos um conjunto de regras que a mesma lei de 22 de
Junho de 1867 prescrevia e que constituíam doravante um quadro
jurídico novo das sociedades anónimas portuguesas.
A lei é ainda explícita quanto às regras para a transmissão
da propriedade das acções: A simples tradição para as
acções ao portador e a cessão regulada pelo direito geral para
as acções nominativas, não podendo ser negociáveis senão
depois da constituição da sociedade e do pagamento de pelo
menos 10% do seu valor nominal. Obrigava-se também a sede da
sociedade anónima a manter um registo actualizado dos nomes dos
primeiros subscritores de capital social, das transferências e
transmissões de acções, da conversão de acções nominativas
para acções ao portador e do pagamento das prestações,
proibindo que houvesse divisibilidade de uma acção: Só se
admite um proprietário para cada acção.
Relativamente à administração das sociedades anónimas, a lei
remete para os estatutos da sociedade a definição das
atribuições dentro da administração, a duração dos
mandatos, as regras para a reeleição e o modo como suprir
impedimentos temporários, bem como a forma de constituição das
assembleias gerais. Também a definição do número de votos por
accionista, o enunciado das regras de representação de
accionistas ausentes e a fixação do número de votos requerido
para determinadas deliberações ficaria determinado na
redacção dos estatutos. É também deixada aos estatutos a
definição da constituição especial de assembleias gerais para
assuntos como o aumento de capital, a alteração dos próprios
estatutos, a dissolução da sociedade ou a sua liquidação.
Mas a lei é taxativa no que respeita à perda de mandato sempre
que cesse a qualidade de accionista, ao papel fiscalizador da
administração da sociedade por parte do seu conselho fiscal e
à necessidade de emissão do seu parecer sobre o balanço ou
inventário do passivo e do activo, sobre a conta corrente de
perdas e ganhos e sobre o relatório da situação comercial,
financeira e económica. Só após quinze dias de exposição na
sede da sociedade de todos estes elementos bem como da lista
geral de accionistas poderiam tais documentos ser aprovados em
assembleia geral, convocada com a maior publicidade possível em
jornais e por carta dirigida a todos os possuidores de acções
nominativas. No caso de não funcionamento da assembleia geral
por falta de número de accionistas ficava prescrita a
necessidade de convocatória para nova reunião, a realizar
dentro de trinta dias mas não antes de quinze.
Queria pôr-se cobro à ignorância da situação comercial,
financeira e económica das sociedades, à falsificação de
documentos emanados, ou à manipulação das assembleias gerais,
bem como à possibilidade de uma gestão enganosa ou fraudulenta.
Já no que respeita à distribuição de lucros, a lei limita-se
a referir a existência de um fundo de reserva alimentado por uma
parte deles até à décima parte do capital social, proíbe os
estatutos de estipularem lucros certos para os accionistas e
considera violação de mandato a distribuição de dividendos
fictícios pelos mandatários. É considerada obrigatória a
publicação no diário oficial do governo do balanço, da conta
corrente de perdas e ganhos, do relatório da situação
comercial, financeira e económica e do parecer do conselho
fiscal, depois de discutidos em assembleia geral.
Para efeitos de dissolução da sociedade estabelece como razão
suficiente que a sociedade esteja em funcionamento por mais de
seis meses com um número de associados inferior a dez. A
deliberação de dissolução pode também ser tomada em
assembleia geral em virtude de perda de metade do capital e por
maioria de votos. Para uma perda de 3/4 do capital bastariam 1/4
dos votos. Em caso de dissolução salvaguardava-se a existência
jurídica da sociedade, mas unicamente para efeitos da sua
liquidação, a qual está necessariamente regulada pelos
estatutos ou, em caso contrário, sê-lo-á pela assembleia
geral, podendo também regular-se pelo direito comercial .
Para efeitos de declaração de falência a lei previu o
respectivo requerimento por parte de um ou mais credores num
quadro de cessação de pagamentos.
2. As sociedades anónimas estrangeiras.
A lei de 22 de Junho de 1867 ocupou-se também das sociedades
anónimas estrangeiras que quisessem laborar em Portugal,
exigindo neste caso a necessidade de aprovação pelo governo,
caso a caso.
Elas teriam de possuir existência jurídica no país, e para tal
precisavam de demonstrar que estavam legalmente constituidas ou
domiciliadas em país estrangeiro, que estavam em funcionamento
nesse país e em plena actividade de negócios de acordo com as
leis próprias e específicas desse país, e que os seus fins
não eram contrários aos interesses públicos.
Mais, a lei exigiu-lhes a declaração de que se sujeitariam às
leis e tribunais portugueses em todas as questões derivadas de
transacções ou operações que fizessem em Portugal e que
respeitariam as leis civis, comerciais, administrativas e fiscais
do nosso país. Ficavam assim sujeitas, na proporção dos
negócios que efectuassem em Portugal, a todas as contribuições
e impostos a que estavam obrigadas as sociedades portuguesas de
igual natureza.
Também os indivíduos declarados como seus mandatários e seus
legítimos representantes em Portugal se tornavam investidos dos
mesmos poderes e atribuições dos mandatários (directores e
administradores) das sociedades portuguesas. Usariam a língua
portuguesa nas apólices e em todos os contratos, mesmo quando se
tratasse de sociedades dedicadas a operações de seguros
(marítimos, terrestres ou de vida).
Caberia ao Ministério das Obras Públicas, Comércio e
Indústria a verificação do cumprimento de todas as condições
requeridas, não podendo nenhuma sociedade anónima estrangeira
funcionar no país sem esta prévia verificação, incluindo
todas aquelas que estavam já a funcionando em Portugal à data
da lei. Também essas se viam agora obrigadas a regularizar no
prazo de seis meses o seu exercício no país, reformando e
publicando os seus estatutos na folha oficial, sob pena de
cessação ipso jure da sua legitimidade jurídica entre nós.
3. Excepções criadas.
Há a registar no articulado da lei de 22 de Junho de 1867 o
enunciado de algumas preocupações especiais.
Por exemplo, continuou sujeita à necessidade de obtenção de
autorização por parte do governo a fundação de sociedades
anónimas, portuguesas ou estrangeiras, "cujo fim fosse a
aquisição de imóveis para os conservar no seu domínio e posse
por mais de dez anos" .
Um segundo exemplo é o da abertura de uma excepção às
Sociedades Anónimas de Seguros relativamente à impossibilidade
geral de abertura de emissão de capital em novas séries
subsequentes senão depois que estivesse pago 75% do capital da
série anterior.
Ficavam isentas das regras gerais enunciadas para as sociedades
estrangeiras, as que fossem de navegação e tivessem nos nossos
portos, incluindo os nossos domínios coloniais, agências
"para a expedição dos negócios relativos ao serviço dos
seus navios nos pontos de escala".
4. Outra legislação.
A lei de 22 de Junho de 1867 para as Sociedades Anónimas de
Responsabilidade Limitada não foi um marco legislativo isolado,
sob o ponto de vista dos aspectos económicos, pois foi precedida
pela lei de 2 de Junho de 1867 através da qual foram também
reguladas em Portugal as sociedades cooperativas.
Por outro lado, este ano de 1867 foi também assinalado pelo
esforço de uma codificação geral para o país, o Código Penal
e o Código Civil , aspecto muito relevante para efeitos da
sociedade civil e das próprias actividades económicas, não só
porque a definição dos aspectos penais abrange os crimes de
natureza económica, mas também porque os aspectos de
transmissão de propriedade se prendem naturalmente com o sistema
de heranças, com a definição de filiação e com o próprio
casamento.
5. O significado do novo traçado jurídico.
De acordo com o relato da discussão deste diploma nas Côrtes o
projecto de lei foi aprovado sem acesas discussões sempre com o
pressuposto de que "Os poderes do estado devem salvaguardar
(...) os capitaes que o publico confia n'estas companhias" .
Na Câmara dos Pares diz a acta da sessão que"não foi
objecto de especial discussão, mórmente em presença dos
luminosos relatórios feitos pelo governo e pelas comissões da
camara dos senhores deputados" e foi aprovado na
generalidade "sem que sobre elle se fizessem reflexões
algumas" .
O entendimento na época do significado económico desta lei era
portanto consensual e consistia em se sublinhar a independência
de que doravante gozavam as sociedades anónimas constituidas em
Portugal em relação ao poder político, uma vez que a lei as
libertava da necessidade de uma autorização governamental para
existirem e da possibilidade de se verem dissolvidas pelo estado:
"O fundamento do parecer para a approvação do projecto de
lei em referencia ás sociedades anonymas é a necessidade de
emancipar estas sociedades da tutela preventiva e repressiva do
ministerio das obras publicas commercio e industria, assim na
constituição como na dissolução das mesmas sociedades,
contendo o projecto o artº 58º, o qual muito coarcta o poder do
governo sobre as ditas sociedades anonymas, apesar de lhe
permitir poder intentar uma acção judicial contra as sociedades
que não preencham as disposições da lei.
A auctoridade pois do governo fica muito mais limitada do que
está actualmente, porque o governo, ouvidos os seus
conselheiros, podia dissolver qualquer sociedade, como aconteceu
com a companhia das aguas e a companhia união mercantil" .
O alcance económico da lei, porém, é muito mais abrangente se
o considerarmos no contexto dos seus efeitos sobre a sociedade
civil.
No século XIX tornou-se habitual distinguir entre a sociedade
civil e o Estado. Desde que o Estado se personificou segundo o
modelo moderno de estado-nação isso constituiu um tremendo
factor para esta distinção . Na sociedade civil podem
considerar-se vários elementos, como a 'esfera política' e a
'esfera económica', e nesta podem citar-se instituições
decisivas como as relações inter-pessoais, a divisão social do
trabalho, as trocas em mercado competitivo e a confiança.
Como é fácil compreender, o estudo da sociedade civil requer
que se considerem as restrições formais e informais que operam
no seu funcionamento. E relativamente às restrições formais, a
legislação sobre propriedade, a legislação sobre a família e
a lei comercial (ou leis sobre contratos), assumem um enorme
papel pela influência que exercem sobre as actividades
económicas .
É o Direito e as suas leis que definem o sistema económico ao
estabelecerem as regras dentro das quais os indivíduos como
agentes económicos e as suas organizações vão trabalhar e
operar. Os efeitos de uma dada lei irão depender do restante
contexto jurídico geral onde a sua definição se insere, mas ao
estabelecê-la é sempre possível que estejam presentes
preocupações de justiça social, por um lado , ou
preocupações com a eficiência, por outro lado.
Por sua vez, a confiança não é a instituição menos relevante
dentro da sociedade civil, pois baseia os contratos entre os
homens e a sua respeitabilidade. E se na Idade Média a fé
cristã podia sedimentar a respeitabilidade dos contratos, nas
sociedades contemporâneas a confiança advém sobretudo da
possibilidade de tornar compulsivos os comportamentos.
Ora a intensificação das trocas no contexto do comércio
internacional e sobretudo os movimentos internacionais de
capitais no contexto do investimento estrangeiro tornaram
indispensável a existência de confiança. E não é mais
possível pensá-la apenas no contexto das comunidades locais,
pois, pelo contrário, ela tem a ver sobretudo com o aumento das
distâncias e com a ausência de uma soberania territorial
global. Neste sentido, o comércio internacional e o seu grande
crescimento ao longo do século XIX e particularmente na sua
segunda metade, criou as noções de mercado mundial e de
sociedade civil internacional, no contexto da qual cada cidade é
uma cidade do mundo e não uma cidade de determinado estado
nacional. Tal como o comércio internacional foi factor de
estímulo ao nascimento de um sistema monetário internacional
eficiente e geral - o padrão-ouro, também o movimento
internacional de capitais foi gerador da necessidade de criação
da confiança à escala universal dos mercados com garantias de
cumprimento das obrigações assumidas .
Numa perspectiva de tipo utilitarista, por exemplo, a protecção
legal dos direitos de propriedade tem um efeito de incentivo ao
uso eficiente dos recursos disponíveis: A criação de direitos
exclusivos pode não ser propriamente condição suficiente para
a afectação eficiente dos recursos disponíveis, mas ela é
pelo menos uma condição necessária.
Quando porém uma coisa é propriedade de mais de uma pessoa, a
lei tem de regular os aspectos relativos à propriedade comum,
como facilmente se compreende. Ora, as sociedades por acções
são um bom exemplo desta situação. Na verdade elas representam
um conjunto de relações consensuais entre accionistas, credores
e gestores, cristalizadas numa teia de contratos. A maior parte
dos contratos são explícitos, outros são implícitos, e
fundamentam-se na lei, definindo direitos e obrigações para
todos e estabelecendo sobretudo como devem ser geridas estas
empresas e como devem ser divididos os seus frutos.
Neste contexto a principal finalidade de uma lei sobre as
sociedades anónimas consiste em facilitar o traçado dos
contratos ao estabelecer por defeito uma série de regras gerais.
Por exemplo, o objectivo dos administradores e gestores de
obterem no mercado a máxima cotação das acções da sociedade
implica que haja nos estatutos o fornecimento de informação
clara àcerca dos seus cuidados e deveres de lealdade, àcerca do
direito de voto dos accionistas ou àcerca das regras de divisão
dos dividendos.
Por sua vez a competitividade no mercado de capitais selecciona
os termos contratuais das sociedades que melhor funcionaram e que
por isso foram mais bem sucedidas, num processo de selecção
quase Darwinista . Os termos contratuais que se revelam
eficientes são os imitados, os demais são abandonados.
Não admira por isso que a redacção dos estatutos e os termos
contratuais passem a ser muito semelhantes. E há vantagens para
a sociedade civil com este processo, dado o pressuposto de que o
que é óptimo para a empresa é óptimo para a sociedade civil
porque maximiza a riqueza social. Reconhece-se hoje que quantas
mais empresas adoptarem estes termos contratuais, maior é o
benefício geral pela criação de externalidades geradas numa
espécie de efeito de aprendizagem: A interpretação das regras
torna-se mais clara, os procedimentos e as interpretações
judiciais que possam vir a ser necessários conseguem tornar-se
mais uniformes.
Da mesma maneira, a eficiência económica requer que os direitos
de propriedade sejam transmissíveis havendo que fazer-se a
definição da sua transmissão.
Como porém os direitos de propriedade acarretam custos para se
fazerem cumprir, a regulação deve interpretar-se como uma forma
de equacionar a divergência entre benefícios sociais e custos
sociais. Não admira assim que os direitos de propriedade, por
acarretarem custos para se fazerem cumprir, sejam mais extensivos
nas sociedades modernas do que nas do passado, pois eles tendem a
ser cada vez mais específicos à medida que cresce a proporção
entre as vantagens sociais que resultam da sua definição e os
custos em que a sociedade incorre para os fazer cumprir.
Esta avaliação de tipo custo-benefício cabe, naturalmente, ao
Estado, aos seus políticos e burocratas, isto é, ao seu
aparelho. Pode interpretar-se a vaga legisladora que ocorreu na
segunda metade do século XIX em todos os estados nacionais
europeus e também em Portugal como uma concretização deste
entendimento por parte dos poderes públicos constituidos.
O significado da lei de 22 de Junho de 1867 deve interpretar-se
neste contexto como uma tentativa para a definição estratégica
do que é uma empresa privada do tipo "Sociedade Anónima de
Responsabilidade Limitada" e das regras do seu funcionamento
dentro da sociedade civil em que se inserem, a sociedade
portuguesa oitocentista. É uma espécie de resposta que foi dada
ao desafio colocado ao legislador da época para uma definição
deste tipo de empresa enquanto instituição a operar dentro do
sistema económico e social.
A sociedade civil portuguesa da segunda metade do século 19
pôde assim colher todas as vantagens que decorrem da
promulgação de uma lei das sociedades anónimas. Estas
vantagens terão sido tanto mais significativas quanto maior foi
a uniformidade relativa ou semelhança dos estatutos redigidos,
quanto maior o número de sectores industriais e comerciais
abrangidos e quanto maior foi a dispersão geográfica e quanto
mais semelhantes os princípios gerais adoptados nas leis
nacionais sobre sociedades anónimas, por haver externalidades
positivas com o aumento de unidades em rede.
Por isso mesmo a contemplação na lei do caso de sociedades
anónimas estrangeiras tem grande relevância por aumentar o raio
geográfico da similitude de procedimentos e de regras. Aliás, a
lei obrigava-as exactamente à obediência das mesmas leis que
às sociedades constituidas em Portugal. A difusão das
relações económicas com o resto do mundo acarretou também a
necessidade de interacção entre os estados para que fosse
possível criar confiança aos agentes económicos no contexto da
teia dos contratos internacionalmente assumidos.
5. A lei como expressão de interesses gerais e particulares.
Pelo que fica dito pode afirmar-se, como conclusão, que o
legislador ao estabelecer por defeito uma série de regras de
funcionamento das sociedades anónimas contribuiu portanto para a
minimização dos custos de transacção e a maximização do
bem-estar social.
Não pode esquecer-se também a existência de grupos de pressão
no que respeita à definição dos aspectos jurídicos, pois a
divergência de interesses pode acarretar a ocorrência de
conflitos ou até disputas entre as instituições que já estão
instaladas, por exemplo, e as que pretendem vir a operar.
O enunciado de excepções às regras gerais do articulado da lei
das sociedades anónimas, nomeadamente de tipo sectorial, poderá
ter correspondido à contemplação de especificidades inerentes
a estes sectores ou ainda a cedências do legislador perante
pressões e interesses manifestados.
Não admirará que se não exija pedido de autorização de
funcionamento para as empresas de navegação que já tivessem
agências nos nossos portos do reino ou das colónias. São
empresas com negócio bem definido e conhecidas do público em
geral, não se colocando receios relativamente a estes aspectos.
Boa parte delas publicava mesmo com frequência anúncios na
imprensa relativamente aos destinos e às datas das partidas mais
próximas, publicitando os serviços que prestavam. E tinha
havido sempre no passado uma preocupação tradicional por parte
das autoridades governamentais em ver asseguradas as carreiras
para o Brasil. Muitos destes negócios estavam representados na
Associação Comercial de Lisboa e incluíam também interesses
no sector da importação e exportação.
Por esta altura a preocupação dominante era a de ver
asseguradas as ligações com as costas africanas. Por outro lado
estas companhias estrangeiras usavam não só a navegação à
vela mas também e cada vez mais a navegação a vapor,
tecnologicamente superior e mais confortável para o transporte
de passageiros. A participação de capitais portugueses no
sector da navegação à vela viria a alargar-se a este tipo de
companhias.
Porém, em matéria de aprovação do projecto de lei a maior
preocupação à data era a da necessidade de que houvesse
isenção no comportamento dos membros do poder judicial. Não
deveria haver sobreposição de interesses por parte dos
magistrados quando fossem chamados a julgar processos relativos
às sociedades anónimas. Na Câmara dos Pares, o Visconde de
Fonte Arcada lembrava:
"(...) o facto é que hoje a cada passo se vêem os juizes
de direito de 1ª e 2ª instancia, conselheiros do tribunal
supremo de justiça, accionistas dos diversos bancos e
companhias, a julgarem causas d'essas mesmas companhias e bancos,
em cujo vencimento elles têem interesse directo, membros do
poder judicial, do legislativo e do poder executivo e dos
tribunaes administrativos, a serem não só accionistas, mas
directores, presidentes e governadores de taes estabelecimentos,
exercendo cumulativamente funções tão oppostas."
(...)
"Segundo o meu modo de ver, o governo fica muito pouco
armado em virtude do que dispõe o artº 58º e o seu § porque,
precisando intentar contra qualquer companhia uma acção, póde
vir a dar-se a circumstancia de vir a ser julgada por directores
da mesma companhia contra quem o governo intentar acção, visto
que o alvará de 5 de Janeiro prohibe que os juizes possam ser
dados por suspeitos nas causas das companhias em que forem
interessados""
Convém sublinhar que a Câmara não encontrou
maneira de contornar este problema dos interesses particulares de
accionistas por as sociedades anónimas serem por sua natureza
anónimas . Com efeito, as acções ao portador não têm
proprietário por sua definição própria e correm de mão em
mão por simples aquisição. As acções nominativas, ao poderem
ser transmitidas por endosso em branco podem permanecer também
incógnitas escapando a qualquer acção proibitiva . Como
reconhecem os juristas, a sociedade anónima "é a típica
sociedade de capitais" . Por isso a votação aprovou o
texto do projecto sem qualquer correcção.
Também a tomada de decisões por parte da burocracia no que
respeita por exemplo à autorização de funcionamento caso a
caso (como acontecia antes da lei de 22 de Julho de 1867 para
todas as 'Companhias' e como continuou a acontecer com as
sociedades anónimas estrangeiras) é uma hipótese a considerar
e que requer evidência empírica a partir do uso de fontes
históricas que possam documentar a existência de tais
pressões.
O papel que teve nestas decisões o uso de informação
estatística por parte da burocracia e a posse de opiniões
próprias tecnicamente fundamentadas são aspectos que importará
também aferir, nomeadamente no contexto, no caso português em
estudo, do Ministério das Obras Públicas Comércio e
Indústria, criado em 1852, pois lhe competia a tomada destas
decisões. Será programa para a continuação da pesquisa.
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Smith, Gervase Clarence - The third Portuguese empire -
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Maria Eugénia Mata - Docente da FEUNL