I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 


A Teoria da Dependência Revisitada



Durante duas décadas, as ciencias sociais latino-americanas foram profundamente influenciadas pelos debates que constituíram a chamada "teoria da dependência". Este movimento de ideias - do qual participaram economistas, sociólogos, politólogos, antropólogos, etc - perdeu gradualmente influência político-académica no início dos anos oitenta, mas ainda conserva vitalidade em maior ou menor grau em grande parte da intelectualidade da região e goza de prestígio razoável em muitas correntes políticas com relativa presença na cena política latino-americana.
Uma demonstração inequívoca da nossa observação, encontra-se nos acalorados debates que, no Brasil, ocorrem em função da presença de Fernando Henriques Cardoso na presidência da república e seu conhecido brado de "esqueçam o que escrevi", pronunciado quando adoptou às políticas dominantes actualmente na absoluta maioria dos países dependentes que significou uma ruptura prática com as hipóteses e ideias defendidas ardorosamente até recentemente no interior daquele movimento de ideias.
Contudo, muito mais relevante para a análise das mudanças operadas por um sociólogo na presidência, é a identificação das razões pelas quais elas ocorreram e contaminaram toda uma geração; e como o juízo sobre as actuais transformações, via de regra, são realizadas com ideias construídas em uma lenta trama histórico-social, justifica-se plenamente nossa incursão neste terreno da história das ideias para verificar até que ponto o diagnóstico realizado no período recente mantém elementos vitais para a compreensão e transformação dos principais problemas da actualidade.
Outro aspecto decisivo é a revisão da teoria da dependência à luz das imensas e complexas transformações operadas no mercado mundial e suas relações com o estado nacional. Mesmo considerando a multiplicidade de perspectivas analíticas no interior do debate sobre a dependência, todas elas presupunham uma determinada capacidade de autodeterminação nacional que choca com as necessidades sistémicas actuais. Estas tensões já estavam presentes quando do auge do debate, porém sem a intensidade e a clareza com que se estabelece na actualidade.
No limite, todas estas e muitas outras questões pretendem responder, mesmo que de maneira limitada, qual o papel dos países dependentes ou das regiões periféricas na actual configuração da economia-mundo, para utilizar o conceito de inspiração braudeliana elaborado por I.Wallerstein.
Nos países latino-americanos, esta revisão implica no tratamento de outro aspecto decisivo do acto de pensar a realidade. Refiro-me ao facto, muitas vezes olimpicamente ignorado, de que países dependentes arrastam em seu desenvolvimento uma carga colonial ou neo-colonial nada desprezível. O neocolonialismo tem sido inclusivé contestado por autores que se posicionam na fronteira crítica, como o filósofo alemão Robert Kurtz, para quem já vivemos numa época "pós-imperialista"; contudo, as evidências históricas e os efeitos práticos da permanência do nexo colonial são tão fortes e importantes que os estudos a respeito não deixam de surgir, como demonstra entre outros o recente livro do sociólogo mexicano Pablo González Casanova que o denominou de "colonialismo global". Portanto podemos facilmente inferir que o neocolonialisno também acompanha o mundo "globalizado", podendo ser mais visível no terreno das relações económicas, mas produzindo efeitos igualmente devastadores na cultura, na política e na produção de conhecimentos. Neste último, o pensamento latino-americano sobre os influxos da luta política que, com frequência, elimina fisicamente ou exila por décadas os nossos melhores homens e mulheres de ciência, caracterizando um pensar fragmentado ou mesmo interrompido pela força da acção estatal. Há ainda o facto, cada dia mais evidente também em períodos de "normalidade democrática", que a política em curso na totalidade dos países dependentes implica cortes mais ou menos permanentes de recursos para a investigação científica (em 1997 o governo brasileiro eliminou recursos equivalentes a 5000 bolsas de estudo para programas de pós-graduação). Estas políticas de austeridade fiscal na prática impedem a reflexão sistemática sobre fenómenos decisivos para a vida de milhões de pessoas e o avanço da pesquisa e do ensino em nossas universidades. É conhecido, como consequência, o efeito das modas académicas surgidas principalmente em centros de produção científica do primeiro mundo que são absorvidas de maneira nada crítica por gerações inteiras nos países na América Latina e Caribe.
A teoria da dependência fugiu desta tendência.



Nildo Domingos Ouriques

 

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