I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 

Cultura, Contexto e Actividade Económica: O Exemplo de uma Empresa Mista em Moçambique



Introdução: Há um velho ditado popular em Portugal (com equivalência certa em muitos outros lugares do mundo) que nos aconselha a «em Roma ser romano». Esta máxima da sabedoria popular não pode ser seguida à risca, tentativas nesse sentido sempre deram resultados pouco credíveis e sobretudo não muito efectivos, mas o oposto também não resulta melhor. Podemos então responder com outro ditado popular e afirmar que «nem 8 nem 80» ou «nem tanto ao mar, nem tanto à terra», ou seja, o que está em causa não é imitar os outros, nem tampouco repetirmo-nos a nós mesmos, mas adaptarmo-nos. É neste conceito fluido e moldável, mas que simultaneamente denuncia um percurso, uma história, uma aprendizagem, que provavelmente encontraremos a solução para comunicarmos com os outros sem deixarmos de ser nós próprios.

Esta necessidade de adaptação, que é um processo necessariamente interactivo e criativo, não é nova, sempre foi sentida no decurso da história humana (e não só), sobretudo em épocas de grandes convulsões e de grandes encontos/desencontros, e em todas as múltiplas dimensões da vida e da actividade. A economia não é excepção. A tomada de consciência da necessidade de adaptar formas de produzir, de comercializar, de distribuír, de gerir recursos escassos, acompanhou desde o início o processo de internacionalização das economias e de criação do que hoje chamamos mercado global.

Durante as décadas de 50 e 60, as empresas norte-americanas foram as primeiras a iniciar este processo, logo seguidas pelas europeias (na sequência do Plano Marchall) e mais tarde, pelas japonesas e de outros países emergentes do Terceiro Mundo (Ronen, 1986:7). Em geral, e no encalçe das teorias do desenvolvimento em voga na altura, as direcções das multinacionais não se preocupavam em adaptar as suas estruturas e os seus modelos de gestão aos diferentes lugares para onde deslocalizavam uma parte da sua produção ou simplesmente abriam um escritório de representação. A doutrina da casa-mãe era a que invariavelmente se exportava para qualquer canto do globo e as únicas variantes que se tomavam em consideração eram as directamente quantificáveis (tarifas, preços, câmbios, direitos aduaneiros, taxas de juro etc.) ou quanto muito as que caíam na alçada do departamento jurídico (direitos de propriedade, de repatriação de dividentos e capitais etc.). Quanto aos recursos humanos, eles eram (e ainda são) enquadrados num esquema, cujo critério de optimização era a semelhança com o seguido pela sede e que consistia, evidentemente, no melhor e mais moderno (Trompenaars, 1993: 40).

É claro que a experiência prática dos quadros expatriados começou logo a revelar lacunas na forma clássica de proceder, ou seja na opção por modelos de gestão "ideais" e "universalmente aplicáveis". Por consequência, numa tentativa de explicar os fenómenos que não se enquadravam nos modelos e resolver os problemas que daí advinham, foram surgindo vários estudos de gestão comparativa, trans-cultural, multicultural ou intercultural .

Foi assim que o conceito de "cultura" , fundamental para a antropologia e também presente na sociologia (sobretudo ligado às noções de socialização e identidade social) irrompeu como variável qualitativa, dificilmente quantificável, no mundo racional e numérico da economia clássica e da gestão de empresas.

1. Cultura, história, contexto e modelos de gestão
É evidente que a não-quantificação do conceito de cultura trouxe problemas metodológicos à investigação nesta área. Além disso surgiu ainda a quaestão, mais teórico, da natureza essencialmente estática ou absolutamente dinâmica da cultura. Se por um lado se teceram "quadros de características" culturais de diversos povos, as quais deveriam ser levadas em conta para um desenho mais eficaz das estratégias de gestão, por outro negou-se por completo o conceito de cultura, reduzindo-a ao produto de uma correlação de forças assimétrica perfeitamente conjuntural ou até resultado de um «olhar exterior objectivante» (Ammselle, 1990:49).

Defendemos um ponto de vista integrador, que se situa entre a visão culturalista clássica (essencialmente norte-americana) e a desconstrução do conceito, operada sobretudo pela antropologia francesa no início dos anos 90. Ou seja, pensamos que cultura se traduz melhor adoptando uma metáfora histórico-genética, em que está presente a noção de evolução ao longo do tempo e adaptação ao meio, mas também a de espécie, que conserva características mais ou menos próprias e definidoras, durante períodos muito prolongados. Deste modo podemos facilmente integrar e proceder a uma análise comum do trabalho de um culturalista como Geert Hofstede, de Philipe D'Iribarne que privilegia as correlações entre comportamento organizacional, evolução histórica e socialização e Monir Tayeb, que integra a variável contexto político e sócio-económico no seu modelo explicativo.

Uma das formas mais comuns de operacionalização do conceito de cultura é o recurso à identificação e medida dos valores. Os valores constituem o «núcleo duro» de uma cultura, aquilo que a socialização primária se encarrega de transmitir logo à partida e podem definir-se como tendências gerais para preferir um certo estado de coisas em vez de um outro (Hofstede, 1991:8), ou como julgamentos sociais normalizados de tudo o que acontece (Ronen, 1986: 22). A maioria dos membros de um grupo ou de uma sociedade não tem consciência dos seus valores, pois estes foram-lhes transmitidos demasiado cedo, por isso só se pode determinar o «perfil de valores» (Ronen, 1986: 24) de um dado grupo inferindo-o a partir do comportamento e/ou das opiniões dos membros desse grupo a propósito dos mais variados assuntos. Como os valores são mensuráveis através de métodos quantitativos, já que pressupôem uma determinada intensidade, ou seja um grau de relevância ou indiferença, e uma direcção, positiva ou negativa, na escala de intensidade, o tratamento estatístico de inquéritos sobre valores permite a detecção de interessantes tendências que permanecem tanto no espaço (abarcando a maioria dos indivíduos de um grupo) como no tempo.

Geert Hofstede, que é considerado por muitos (Bosche,1993:10) o «pai» da gestão intercultural, utilizou precisamente a técnica da detecção e medida de valores relacionados com o trabalho. Ele aplicou um único questionário nas sucursais IBM em 40 países e em dois momentos no tempo (1968 e 1972) e obteve cerca de 116 mil respostas. A partir daí, por meio de análise estatística e raciocínio teórico, definiu quatro dimensões que, na sua opinião marcam as diferenças entre países no que diz respeito aos valores relacionados com o trabalho: distância hierárquica, controle da incerteza, individualismo e masculinidade (Hofstede, 1988).

A distância hierárquica está relacionada com a forma como a sociedade encara as desigualdades, o facto de haver indivíduos com mais poder e outros com menos poder. Segundo as conclusões de Hofstede, há sociedades que aceitam essas desigualdades e outras que fazem tudo para as esbater. A partir daqui é possível abstraír uma série de características inerentes às sociedades e compreender muitos comportamentos, nomeadamente as relações hierárquicas e o tipo de liderança mais adequado à gestão de uma empresa.

O controle da incerteza é a dimensão segundo a qual as sociedades encaram de forma mais despreocupada ou mais ansiosa o facto de não ser possível prevêr o futuro, e como tal serem obrigadas a viver numa permanente incerteza. Em algumas sociedades esse facto não é vivido de forma angustiante, noutras, no entanto, surge como um problema maior, que urge contrariar criando mecanismos de defesa, como por exemplo um número considerável de regras mais ou menos estritas, fé na tecnologia ou devoção religiosa. Em países onde se relacionam altos níveis de controle da incerteza com índices também elevados de distâncias hierárquica, as organizações terão tendência a funcionar segundo modelos altamente burocratizados.

O individualismo é a dimensão abstraída por Hofstede que mais se relaciona com a riqueza material das nações. Geert Hofstede chegou à conclusão que nos países mais ricos, mais industrializados e tecnologicamente mais sofisticados, toda a ênfase é colocada no indivíduo, o qual é responsável único pelos seus actos e é socialmente incentivado a velar pelos seus interesses próprios e, quanto muito, pelos da sua família nuclear. No extremo oposto, encontram-se as sociedades, normalmente mais pobres em termos económicos e pouco industrializadas, em que o indivíduo é encarado enquanto membro de uma comunidade, seja ela família alargada, linhagem, tribo ou outra, e não possui valor por si próprio mas apenas no âmbito do seu posicionamento no grupo do qual é indissociável .

A masculinidade e o seu oposto, a feminilidade, divide as sociedades segundo a importância que em cada uma é atribuída a valores socialmente mais conotados com o sexo masculino ou com o sexo feminino. «Numa sociedade masculina, o héroi é o realizador, o superhomem. Numa sociedade mais feminina, a simpatia do público vai para o antihéroi, para o oprimido, a notoriedade individual é suspeita» (Hofstede, 1987: 16).

Hofstede atribuiu a cada país estudado valores entre 0 e 100 para cada uma das dimensões e relacionou-as entre si e com outras variáveis independentes, acabando por agrupar os diferentes países em vários «aglomerados» (cluster), com características mais ou menos idênticas. Chegou assim à definição de quatro modelos implícitos de organização, respectivamente o mercado (próprio dos países anglo-saxónicos e escandinavos), a máquina bem oleada (característico dos países germânicos e Israel), a família (Sudeste asiático) e a pirâmide (países latinos, mediterrânicos, islâmicos, o Japão e algumas outras zonas da Ásia) (Hofstede, 1988: 216).

O grande mérito de Hofstede, para além de ter elaborado uma recolha quantitativa de dados de dimensão notável, reside no facto de ter posto a nú a influência das culturas nacionais sobre o funcionamento das organizações, tanto em termos de modelo estrutural e hierárquico, como de comportamento dos seus membros a nível de estratégias informais. Deste modo, ficou clara a impossibilidade de exportar técnicas de gestão sem proceder a adaptações importantes e de ser inglório procurar uma forma ideal de gestão universalmente aplicável.

Seguindo uma via metodológica completamente diferente, apoiando-se essencialmente em observações no terreno, análise documental e entrevistas, o investigador francês Philipe D'Iribarne concluíu, do mesmo modo, que as culturas nacionais influenciam de forma bastante clara a gestão das empresas e estabeleceu linhas explicativas, que permitem observar o funcionamento das empresas e as relações entre os seus membros à luz do percurso histórico do país e também do tipo de socialização primária dos seus nacionais. Assim, D'Iribarne explica os traços característicos da gestão americana a partir da importância fundamental do acto fundador da primeira colónia de emigrantes desenbarcados do Mayflower, um contrato leal (fayr) entre iguais, um relacionamento entre «fornecedor» e «cliente», em que a responsabilidade pelo cumprimento dos objectivos é muito mais importante do que o respeito pela hierarquia e onde os conflitos são resolvidos com base em provas «objectivas» e não opiniões, relações ou posições. Já em França, e ainda segundo D'Iribarne, a vida das empresas é ainda hoje marcada pela importância das ordens, das corporações profissionais e da nobreza atribuída ao trabalho intelectual, enquanto o esforço físico continua associado ao labor braçal e às mãos sujas dos que cultivam a terra. Tudo isto atesta da punjança da sociedade feudal francesa e da permanência extrema de reminiscências dos Antigo Regime neste país (D'Iribarne, 1989).

Philipe D'Iribarne é um dos raros, e seguramente dos primeiros, investigadores ocidentais a tratar a problemática da gestão de empresas em África . Utilizando um método semelhante ao aplicado aos casos mais comuns da Europa e dos Estados Unidos, D'Iribarne associa o modo como são geridas as empresas naquele continente à preponderância excepcional dos laços de parentesco na sociedade africana, que criam uma grande cumplicidade entre os que se consideram familiares, mas dificultam a comunicação com terceiros, e ao respeito que a educação tradicional impôe aos mais novos em relação aos mais velhos. Ambas estas características, assim como o receio tanto da crítica como da tomada de decisões, dificultam a aplicação das medidas básicas da gestão clássica às empresas africanas (D'Iribarne, 1990).

Uma das objecções que se pode levantar aos resultados tanto de Hofstede como de D'Iribarne, é que ambos desenham «perfis culturais», no primeiro caso entendidos como um verdadeiro «programa mental», que molda os actos e lhes atribui um determinado valor e significado, no segundo como um percurso histórico, que explica a permanência de determinadas características na vida empresarial dos diversos países estudados. No entanto, nem num caso nem no outro se tece uma ligação directa entre um determinado comportamento e respectiva valorização social e o momento em que ele ocorre, ou seja, o contexto em que se desenrola.

Monir Tayeb, uma investigadora indiana que se tem dedicado à comparação entre formas de gestão na Ìndia e na Inglaterra, introduziu a variável «ambiente sócio-político», criando um modelo integrado multi-perspectivo que permite compreender a estrutura organizacional e o sistema de relações no seu interior, a partir da análise, não só de factores de natureza cultural, mas também contextual, tanto os contingentes, relativos à própria actividade da empresa, como os mais gerais, ligados ao ambiente sócio-político, tipo de governo, peso dos sindicatos, estratificação social etc. (Tayeb, 1991).

A introdução do factor contexto, sem negar a validade da abordagem cultural, enriquece-a na medida em que a coloca num espaço e num tempo determinados e permite explicar como é que grupos com padrões de valores aparentemente semelhantes, ou pelo menos não antagónicos, podem manter entre si relações de distância quase absoluta.

2. A XY: um caso de (des)encontro de semelhantes
A XY é um exemplo de empresa imperial (Coquery-Vidrovitch, 1981: 291-94). Foi recriada na segunda metade da década de 80, altura em que adquiriu o seu actual estatuto de empresa mista, com 50% de capital pertencente ao Estado moçambicano e 50% constituído por capitais privados, moçambicanos de jure mas portugueses de facto. A XY é herdeira de uma antiga empresa privada, detida por colonos portugueses, nacionalizada após a independência e posteriormente parcialmente reprivatizada nos moldes acima referidos. A presença do Estado moçambicano na XY foi sempre bastante dúbia, por um lado porque ela contrariava orientações ideológicas ainda prevalecentes na altura do acordo , por outro porque o tipo de administração negociado entre as partes, por imposição do parceiro português , não admitia a gestão conjunta da empresa. Assim, o Estado limita a sua presença a dois representantes no conselho de gerência, perante os quais a administração é responsável, mas que não detêm qualquer poder executivo e nem sequer funções consultivas. A administração da XY está sediada em Maputo e é exclusivamente constituída por portugueses tal como as direcções das restantes quatro sucursais espalhadas pelo país. Os portugueses asseguram ainda algumas (poucas) chefias intermédias e o sector de formação profissional. Os assuntos respeitantes aos recursos humanos, inclusive os processos disciplinares e a defesa da empresa junto do Tribunal do Trabalho, está a cargo de moçambicanos negros. Deste modo, se exceptuarmos os escassos casos de chefias intermédias ocupadas por portugueses, nunca encontramos um moçambicano cujo estatuto dentro da empresa seja superior ou sequer idêntico ao de um português, pois estes últimos ou são directores, ou ocupam lugares de formadores, paralelos à hierarquia, mas de significação simultaneamente distanciada e prestigiante. A legitimidade dos directores não se apoia no nível de formação académica, mas depende aparentemente de ser ou não de nacionalidade portuguesa.

Se observarmos o organigrama da empresa (vêr anexo I), podemos constatar que este é perfeitamente piramidal, com um evidente distanciamento entre o director-geral e os restantes directores, e não prevê qualquer mecanismo de comunicação horizontal. A coordenação nacional é composta pelos directores da unidade do Maputo, o que corresponde a uma centralização do poder na capital, e o apoio técnico e formação profissional surge, como já foi referido, numa posição «exterior» e paralela à hierarquia.

A XY-Maputo emprega cerca de 250 trabalhadores (dos quais apenas uma dezena são estrangeiros). Destes, 43 responderam ao inquérito sobre valores relacionados com o trabalho , entre eles 5 estrangeiros (portugueses brancos), todos membros da direcção ou formadores. Em termos de escolarização, 6 dos inquiridos têm nível primário, dos quais 2 são portugueses (um director e um formador); 23 secundário (embora frequentemente com frequência incompleta) e 13 médio, dos quais dois são portugueses, ambos directores. Apenas uma inquirida, uma directora portuguesa, tem nível de escolaridade superior equivalente ao bacharelato.

Na XY a formação não é o factor decisivo de promoção hierárquica. Dos 13 inquiridos com nível médio apenas 6 desempenham funções de chefia, e entre estes dois directores portugueses. Os restantes 7 são trabalhadores sem responsabilidades particulares. Outros factores, como a idade e a antiguidade na empresa são mais valorizados. O chefe típico da nossa amostra é o indivíduo do sexo masculino, com idade compreendida entre os 31 e os 40 anos, o ensino secundário e mais de 9 anos de dedicação à empresa. Esta conclusão não teria nada de especial e enquadrar-se-ia perfeitamente no modelo de empresa tradicional ainda dominante, se não fossem as promoções rápidas (leia-se automáticas) de indivíduos cujo único traço comum distintivo é serem portugueses de raça branca (Fig.1 e 2).

Antiguidade/Escolaridade Primário Secundário Médio Superior
<1 ano de serviço 0 1 0 0
2 a 5 anos 1 1 2 0
6 a 9 anos 0 1 1 0
>9 anos 0 3 1 0

Fig. 1 Distribuição de chefias segundo o nível de escolaridade e anos de serviço (Moçambicanos)



Antiguidade/Escolaridade Primário Secundário Médio Superior
<1 ano de serviço 1 0 2 1
2 a 5 anos 1 0 0 0
6 a 9 anos 0 0 0 0
>9 anos 0 0 0 0

Fig.2 Distribuição de chefias segundo o nível de escolaridade e anos de serviço (Portugueses)

A exiguidade da amostra e o facto de o inquérito ter sido aplicado numa única empresa não autoriza o cálculo de índices semelhantes aos de Geert Hofstede, que funcionam como indicadores nacionais, mas a distribuição de frequência das respostas permite determinar as tendências (máxima, média ou mínima) das 4 dimensões de Hofstede.

Observemos os valores globais destas tendências , obtidas a partir das respostas dos moçambicanos em geral, dos portugueses e dos chefes moçambicanos (Fig.3).

Moç-geral Moç-chefias Portugue.
DH 82 82 60
CI 66 64 60
IND 28 27 40
MAS 16 15 13

Fig.3: Comparação dos valores das tendências elevadas das quatro dimensões de Hofstede.
Os índices aqui apresentados mostram que a maioria dos entrevistados aderiu claramente a valores que indiciam a presença de uma forte distância hierárquica (DH). Embora a variação de posições entre portugueses e moçambicanos seja bastante elevada (20%), consideramos que ela é relativamente pouco significativa, já que os portugueses estão todos no topo da hierarquia da empresa, pelo que a sua relação com a autoridade é necessariamente diferente. Os índices de controle da incerteza (CI) também denunciam uma situação em que os níveis de ansiedade são elevados. Neste caso, a posição de chefia, mais assegurada, é factor de variação negativa destes níveis, e isto revela-se, tanto entre moçambicanos, como entre portugueses. Dada a situação privilegiada destes últimos, os índices de CI atingidos pouco variam em relação aos dos moçambicanos. Quanto ao individualismo (IDV), a situação já se coloca noutros termos. A variação segundo a função é praticamente nula, mas é elevada (13%) segundo a nacionalidade. Uma vez que o IDV é a dimensão de Hofstede mais directamente correlacionada com a riqueza material das nações, este resultado não consititui surpresa. No entanto, uma tendência elevada de IDV inferior a 50% indica que os entrevistados portugueses continuam suficientemente ligados a valores «colectivistas». Os índices da tendência elevada de masculinidade (MAS) são diminutos. Não se observa variação segundo a função e apenas ligeira segundo a nacionalidade. Os portugueses apresentam-se como mais «femininos» do que os moçambicanos, e eventualmente terão influenciado estes últimos no mesmo sentido.

Moç-geral Moç-chefias Portugue.
DH 8 9 20
CI 16 18 10
IND 23 27 20
MAS 24 24 23

Fig.4: Comparação dos valores das tendências médias das quatro dimensões de Hofstede.

As tendências médias de DH indicam uma variação muito maior das respostas segundo a nacionalidade. Os portugueses optaram sobretudo por respostas associadas à tendência média desta dimensão, o que vem confirmar níveis relativamente elevados da mesma. Quanto ao CI, as diferenças segundo a nacionalidade também são nítidas, mas foram sobretudo os moçambicanos que optaram por uma posição que aponta para um grau mediano de ansiedade, tendo-se as respostas dos portugueses concentrado nas tendências máxima e mínima. A tendência média de IDV esbate as variações segundo a nacionalidade, já que a diferença entre as respostas de portugueses e moçambicanos é quase tão grande como entre moçambicanos chefes e subordinados. Os moçambicanos continuam a demonstrar maior apego aos valores da masculinidade do que os portugueses, mas a variação é pequena.
Moç-geral Moç-chefias Portugue.
DH 11 9 20
CI 18 18 30
IND 48 45 40
MAS 60 61 64

Fig.5: Comparação dos valores das tendências mínimas das quatro dimensões de Hofstede.
A tendência para uma DH mínima é reduzida em todos os grupos, mais entre moçambicanos do que entre portugueses, como seria de esperar. Com o controle da incerteza passa-se precisamente o mesmo, mas a ligeira variação segundo a função, apresentada pelo quadro de DH, desaparece, e a diferença é apenas sensível segundo a nacionalidade. A relativa «fraqueza» dos valores individualistas portugueses fica demonstrada por uma incidência bastante grande (40%) de respostas associadas a um fraco IDV, muito embora os moçambicanos demonstrem ser ainda mais «colectivistas». A tendência mínima de MAS quase não apresenta variação, quer segundo a função, quer segundo a nacionalidade, e soma alto em todos os casos.

Embora tenha ficado claro, que entrevistados portugueses e moçambicanos da XY, não se revêm nos mesmos valores relacionados com o trabalho, os índices obtidos não permitem
concluír que estes sejam antagónicos. Pelo contrário, as variações são relativamente pequenas dada a diferença de circunstâncias, pelo que não é possível explicar as relações de conflitualidade surda, que tendem a estabelecer-se na empresa, a partir da incompatibilidade de valores. O desnível hierárquico legitimado pela raça e não pela formação e competência técnicas, característicos de um panorama segregacionista de tipo colonial, são os principais responsáveis pela situação de conflito latente detectada.

Esta situação pode ser compreendida à luz do contexto político-económico do país, tanto à data da entrada em vigor das primeiras medidas do PRE (Programa de Reabilitação Económica) , como em todo o percurso posterir de lento relançamento económico conduzido por um Estado enfraquecido e uma elite dirigente descapitalizada e sem tradição de acumulação ou poupança. Após o cataclismo económico, político e social, o longo período de guerra que acompanhou a experiência revolucionária falhada de Moçambique, o colapso das empresas públicas etc., e perante a necessidade absoluta de reduzir os gastos e privatizar o privatizável, tudo é feito para atraír e manter o capital investido, todo ele estrangeiro. Por seu turno, o investidor externo não confia num parceiro «de passado duvidoso». O seu objectivo é assegurar por completo o capital investido e extraír o máximo no mínimo de tempo possível. É esta «mentalidade extractiva» que está na base de uma política de gestão de recursos humanos que impõe uma barreira racial implícita, pois só esta permite manter o controlo absoluto sobre o capital, na medida em que cria fortes solidariedades «étnicas» , tecidas em torno da defesa de privilégios de legitimidade duvidosa ou simplesmente da fidelidade ao grupo. Na mesma linha de actuação, a importação de técnicos expatriados, com formação escolar bastante baixa, permite pagar-lhes, de facto, muito menos do que é oficialmente comunicado ao governo moçambicano e assim exportar ilegalmente montantes, dos quais apenas uma parcela vai parar à conta bancária do cooperante contratado.
Este tipo de política é bastante desmotivadora para os quadros moçambicanos, nomeadamente os quadros médios, cuja formação escolar é comparável à da maioria dos directores portugueses , e só é suportada por duas ordens de razões. Uma primeira mais objectiva, que se traduz no medo de perder um salário, que embora baixo, é garantido e indispensável ao sustento de agregados familiares bastante extensos , e uma segunda mais subjectiva, aqual se prende por um lado, com problemas de liderança, e por outro com o recurso quase inconsciente a estratégias memorizadas com feedback positivo.

Nas sociedades africanas em geral, o poder é tradicionalmente exercido de forma bastante centralizadora e paternalista (Dia, 1994: 177-79), o que desde logo põe em causa a legitimidade de um chefe mais novo do que os seus subordinados . Mas mesmo que este seja mais velho, ou como tal considerado devido à sua sabedoria e experiência, terá dificuldades em tomar decisões, sobretudo se estas forem impopulares ou puderem prejudicar um ou outro subordinado. Tais decisões podem despertar más-vontades ou invejas , as quais envolvem o decisor numa teia de medos e inseguranças que o paralisam por completo . Nestas circunstâncias, a existência de um grupo de estrangeiros que centralisa em si o poder de decisão, pode não ser mal aceite (D'Iribarne, 1990:31). Por outro lado, inseridos como estão num ambiente que reproduz de perto o relacionamento colonial, os actores sociais têm tendência a reactualizar atitudes e estratégias que foram premiadas num passado não demasiado distante, nomeadamente o recurso a redes de parentes e conhecimentos, a actividades ilegais ou semi-legais como o roubo ou a utilização de material da empresa para «biscates» próprios, ao apadrinhamento (Penvenne, 1995: 120, 128-29), à resistência passiva e aos comportamentos defensivos (Ashforth, Lee, 1990) .

A memória da submissão reconstroi-se assim a partir do feedback positivo acumulado pela experiência de uma longa aprendizagem (Waldrop, 1994: 158).

Conclusão: O movimento no sentido da internacionalização da economia e da globalização dos mercados, o falhanço dos esforços desenvolvimentistas em África e o sucesso das economias asiáticas, sobretudo do Japão, têm vindo a confrontar-nos com a diferença e a levantar questões sobre a exportabilidade de modelos de gestão ou a universalidade das vias para a prosperidade económica. Desde os anos 70 que, a par de uma busca de modelos optimizados e universais, se procura entender as razões dos desaires e dos sucessos daqueles que pensam e agem segundo lógicas que, sendo essencialmente semelhantes, são formalmente completamente diferentes. A necessidade de conhecer o Outro (e por consequência também o Nós), de compreender a lógica das suas experiências e da sua actuação e de adaptar políticas aos contextos concretos, agindo no sentido de formar para a diferença e inclusive introduzir alterações contextuais que permitam uma maior interacção e uma acrescida criatividade, são hoje dados adquiridos. O grande desafio actual das empresas transnacionais (e das uniões de Estados) é precisamente o de manter uma unidade global, como uma cúpula capaz de albergar as múltiplas diferenças. Os esforços nesse sentido são tanto mais necessários quanto a semelhança dos códigos culturais, como o demonstra a experiência da XY, não é condição suficiente para um trabalho comum efectivo e produtivo. A análise das culturas e dos contextos, a par de todos os outros factores que já são tradicionalmente tidos em conta quando uma empresa se decide a expandir a sua actividade para lá das fronteiras nacionais, é fundamental para controlar os riscos e tirar o máximo partido da internacionalização. Esta regra, que se aplica a todos os lugares do mundo, é especialmente importante no contexto africano, cujas especificidades são um desafio para qualquer investidor, mas que continua a guardar uma enorme importância económica, política e emocional para Portugal.

Bibliografia:
ABRAHAMSSON, H., NILSSON, A.(1994), Moçambique em transição, Padrigu -CEEI/ISRI, Maputo

AMSELLE, J.L. (1990) Logiques métisses, Payot, Paris
ASHFORTH, B.E., LEE, R.T., (1990), "Defensive Behavior in Organizations: A preliminary Model", Human Relations, 43, 7: 621 - 648
BOSCHE, M. (1993), Le management interculturel, Paris, Nathan
COQUERY-VIDROVITCH, C. (1981), Entreprises et entrepreneurs en Afrique XIX et XX siécles, tome 1, L'Harmattan, Paris
DIA, M. (1994), "Indigenous management practices: lessons for Africa's Management in the '90s", in: Serageldin, I.; Taboroff, J. (Org.); Culture and development in Africa, World Bank, Washington D.C.
D'IRIBARNE, P., (1989), La logique de l'honneur, Seuil, Paris
D'IRIBARNE, P., (1990), "Face a l'impossible décentralisation de l'entreprise africaine", Revue Française de Géstion, 80, 28-39
FRANÇA, L., (1993), Valores Europeus, identidade cultural, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, Lisboa
GESCHIERE, P. (1995), Sorcellerie et politique en Afrique, Karthala, Paris
GOMES, A.C. (1996), A memória da submissão, Tese de Mestrado, ISCTE
HOFSTEDE, G., (1987), "Relativité culturelle des pratiques et théories de l'organization", Revue Française de Gestion, 64: 10 - 21
HOFSTEDE, G., (1988), Cultures consequences, Sage, London, Beverly Hills, New Deli,(4th. Ed)
HOFSTEDE, G., (1991), Cultures and organizations: software of the mind, McGraw-Hill, London
HOFSTEDE, G., (1993), "Cultural constraints in management theories", Academy of Management Executive, 7(1): 81-94
PENVENNE,J.M.,(1995), African workers and colonial racism, Heinemann, Witwatersrand University Press, James Curley, Portsmouth, Joannesburg, London
RONEN, S., (1986), Comparative and multinational management, John Wiley and Sons, New York
TAYEB, M. (1991), "Socio-political environment and management-employee relationships: an empirical study of England and India", in: Brewster, C.; Tyson, S. (Ed), International Comparisons in Human Resource Management, Pitman, London
TROMPENAARS, F.(1994), L'entreprise multiculturelle, Maxima Laurent du Mesnil, Boulogne
WALLDROP,M.,(1994), Complexity, Penguin, London

 

Ana Célia Calapez Gomes

  Voltar ao topo