I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 


A Imagem do 'Brasileiro' Na Obra Literária de Júlio Dinis



1 - Colocação do problema.

O 'brasileiro' (isto é, o emigrante português retornado do Brasil) é uma figura central da história social do Portugal oitocentista, tendo já sido alvo de importantes estudos sociológicos com base em diferentes fontes, de que se destaca ALVES, 1994.
Neste estudo pretendo abordar alguns aspectos da imagem literária desse tipo social. Essa imagem pode sintetizar-se dizendo que se trata de alguém de posição social modesta, enriquecido durante a estadia no continente americano e regressado para gozar e ostentar na sua terra natal a riqueza adquirida. É essa imagem que habitualmente se supõe reflectir-se na obra do escritor português Joaquim Gomes Coelho (1839-1871), vulgarmente conhecido pelo pseudónimo literário de Júlio Dinis, e até ter sido estimulada por ela. Por exemplo, STERN, 1972: 71 nota que "The brasileiros, poor Portuguese emigrants who returned wealthy from Brazil, are noted for their ostentatiousness in Morgadinha" e BENIS, 1981: 129-130 vai mais longe ao afirmar que "a personagem esboçada em 1868 por Júlio Dinis em A Morgadinha dos Canaviais […] é o início de um traço […] que Camilo Castelo Branco finalizará", acrescentando que "Esta imagem depreciativa do 'brasileiro' não teve um contraponto consistente na literatura portuguesa de Oitocentos. […] Será necessário esperar por Ferreira de Castro (A Selva, 1930) e Miguel Torga (Traço de União, 1955) para que [esse contraponto] se crie". Outros estudos sobre Júlio Dinis, mesmo quando se debruçam primordialmente sobre o carácter social das personagens das suas obras, não se concentram ou ignoram mesmo as figuras de 'brasileiro' que nela surgem. É o caso, por exemplo, de SARAIVA, 1961, de SIMÕES, 1962 e, aqui talvez um pouco mais surpreendentemente, de SANTILLI, 1967.
Porém, a obra de Júlio Dinis contém elementos muito diversificados (e não necessàriamente depreciativos) para a caracterização social do 'brasileiro'. Essa diversidade da imagem do 'brasileiro na obra literária de Júlio Dinis será documentada na secção seguinte deste texto. Isso suscita, entretanto, uma outra questão: por que é que só a imagem do 'brasileiro' rentista e ostentador da sua riqueza perdurou ? Essa outra questão será abordada na última secção deste texto.



2. Tipologia do 'brasileiro' na obra literária de Júlio Dinis.

Três tipos bastante diferentes de 'brasileiro' estão presentes na obra literária de Júlio Dinis:
a) O 'brasileiro' rentista, isto é, o 'brasileiro' relativamente abastado que vive fundamentalmente de rendimentos da propriedade mobiliária (juros) e imobiliária (rendas).
b) O 'brasileiro' empresário, isto é, o 'brasileiro' também relativamente abastado que vive fundamentalmente de rendimentos da empresa (lucros).
c) O 'brasileiro' fracassado, isto é, o 'brasileiro' a quem a sua passagem pelo continente americano não enriqueceu.
Importa descer a algum pormenor, mostrando que esses três tipos de 'brasileiro' diferem, não só pela sua inserção económica na sociedade, mas também por comportamentos e características culturais.


- O 'brasileiro' rentista.

O paradigma do 'brasileiro' rentista na obra de Júlio Dinis surge, como já assinalado, no romance A Morgadinha dos Canaviais. Trata-se da figura de Eusébio Seabra.
A acção do romance passa-se numa aldeia não identificada do Minho Interior. É ao passar em revista os influentes locais, reunidos no tradicional local de sociabilidade que é a taberna, que o autor apresenta assim a personagem em questão:

"Era um homem de cinquenta annos; bem figurado e sisudo, de falar compassado e com os seus quês de oraculo, frases sentenciosas e ares de protecção a todo o mundo.
Sahira criança da aldeia e fora tentar a fortuna ao Brazil. Por lá esteve quarenta annos e voltou o homem grave que vemos e rico. O como enriqueceo não sei, e ninguém na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sitio em que nascera, uma casa grande, de cantaria e azulejo, com três andares e varanda, jardim com estatuas de louça e alegretes pintados de verde e amarelo, o qual jardim tinha mais fama naquelas aldeias vizinhas do que os jardins suspensos de Babilonia. Trouxera um papagaio e uma arara, igualmente famosos, e uma botica hemeopatica, que elle proprio manipulava.
As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira personagem de influencia na aldeia. Para isso começou por fazer alguns reparos na igreja paroquial, presenteou com vestidos novos todos os sanctos dos altares e mandou renovar um sinno que havia doze annos que tocava a rachado. Fez à sua custa a festa do orago, chegando a mandar vir fogo prezo da cidade e um aerostato que ardeo a pouca altura do chão. Apesar de todos estes beneficios à localidade, o conselheiro Manuel Berardo, pae da morgadinha, conquanto vivesse quase sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe sombra e a contrastar-lhe as ambiciosas vistas. Por isso, apesar da aparente amizade com que Seabra o acolhia e lisonjeava até, conservava por elle no fundo uma má vontade, um ciume, de que eram de recear, tarde ou cedo, explosões.
[…]. Usava sempre de suiça irrepreensivelmente talhada em volta do queixo; camisa muito lavada, peitos abertos e três grandes botões de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas cores de uma ave da America; e o ouro, distribuido com profusão por todos os acessorios da sua pessoa, atestava os bons resultados dos seus quarenta annos de Brazil. Passeava pela aldeia de chinelos de marroquim verde ou sapato de tapete, e era tal nelle a delicadeza no andar, que voltava a casa sem que uma mancha enodoasse a alvura das suas meias de algodão fino. Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a com botas de polimento."

Para além desta apresentação, assinalem-se dois aspectos evocados em outros passos da obra: a existência de duas filhas, a que a personagem que dá o nome ao romance se refere com a curiosa e significativa denominação de "mulatinhas"; e o facto de Seabra ter sido no Brasil membro da maçonaria.
Vale a pena sublinhar os traços principais deste retrato: a emigração precoce, a obscuridade da vida no Brasil, o consumo ostentatório e o desejo de poder a nível local. Não é feita nenhuma análise da actividade económica da personagem, o que sublinha implìcitamente o seu carácter de 'brasileiro' rentista.
Júlio Dinis demora-se sobretudo na caracterização cultural de Eusébio Seabra. As suas exposições às personalidades locais e lavradores reunidos na taberna incluem uma tentativa de demonstração da utilidade das estradas, questão candente por estar iminente o início da construção da nova estrada para a localidade:

"[…] As estradas são meios de comunicação e… facilitam o… o… trafego commercial e aumentam, por conseguinte, a riqueza das nações… Porque o trabalho representa um capital… sim… um capital morto… quero dizer um capital que não vive… Quer dizer… sim… suponhamos: o credito, por exemplo… O credito… sim… ahi está o credito… Pois que é o credito?… O credito é… é o credito… depende de muitas coisas… Por outra, suponhamos… se nós não tivessemos estradas… Uma suposição… Partamos de um principio. A producção excede o consumo.… Quero mesmo que o consumo exceda a producção… Sim, quero mesmo isso… Muito bem… Dahi que resulta ? Está claro que um desequilibrio. E depois ?… Depois, boas noites… Não havendo estradas… Ahi está o que se diz por ahi que a livre exportação, que tal, sim senhores… mais isto… mais aquilo… Pois não é assim. É preciso que se atenda também às condições economicas dos povos. Sim… eu digo: O commercio deve ser livre… Muito bem… Em termos, já se sabe… Mas… o commercio livre… a livre troca… entendamo-nos… É preciso clareza de ideias… Quando eu digo que… Ora suponhamos… suponhamos que não havia estradas… Os transportes eram mais dificeis e, portanto, mais caros… E se, além disso, os generos fossem escassos e… Diz vocemecê para que servem as estradas ? Ora, diga-me uma coisa, […], suponhamos que… os impostos indirectos… não precisamos de ir mais longe… os impostos indirectos… Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer.
[…] a riqueza… a riqueza… sim, a riqueza não está na terra… isto é, a riqueza está na terra… mas é preciso o capital para exploração… Percebe ?… Ou… suponhamos, por exemplo… Não… vamos cá por outro lado… Há um deficit no orçamento… desce o preço das inscripções… Ora bem… Mas… suponhamos que há boas estradas, etc.… A riqueza tende a aumentar… e… e… Enfim, lá que as estradas são uteis, isso é que não tem questão !"

Noutra altura, Seabra procura explicar por que apoia o enterramento no cemitério e não na igreja, outra questão candente da política local:

"O enterrar nas egrejas é anti-higienico; porque os chimicos sabem que… o ar que não é puro… é mao para a saude publica. Ora os cadaveres… em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o ar… Há uns insectozinhos invisiveis que a gente respira… e vão para a massa do sangue e corrompem-na… e o resultado é a febre… porque a febre são os humores a ferver… como o vinho no lagar… e se sahem, muito que bem; e se não sahem, ficam retidos e azedam o corpo todo."

Note-se que, independentemente da clareza dos argumentos, Seabra procura marcar uma posição de concordância com o progresso, demarcando-se assim do vulgo da aldeia.
Enfim, Júlio Dinis desce a algum pormenor sobre a casa de Eusébio Seabra:

"As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos de cana, por onde se entrelaçavam magras trepadeiras; um pequeno modelo de fragata brazileira, com tripulação da altura dos cestos da gavea, fluctuando num tanque circular; uma gruta estucada de azul e com assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o senhor Seabra, eram as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas vulgar; litografias coloridas em custosas molduras douradas; bordados, diplomas de socio de não sei quantas sociedades brazileiras, tudo encaixilhado, e no lugar de honra a estampa das capelas do Bom Jesus de Braga. À impertinencia de admirar estas preciosidades, acrescia a de ouvir e ter de achar graça a um papagaio que cantava o himno brazileiro."

Não pode deixar de notar-se a ironia com que o escritor caracteriza o suposto mau gosto dos palacetes de 'brasileiro' - palacetes de 'brasileiro' que, entretanto, se tornaram um elemento característico do património construído do Entre-Douro-e-Minho, e estão hoje em dia salvos da crítica generalizada pelo aparecimento das casas de 'franceses' (isto é, de emigrantes portugueses retornados Europa Central, sobretudo da França), tão chocantes para a sensibilidade dos finais do século 20 quanto os palacetes de 'brasileiro' o eram para a de meados do século 19.
O essencial das restantes referências a Eusébio Seabra ao longo da obra tem pouco a ver com a sua condição de 'brasileiro', visto que elas correspondem fundamentalmente à descrição da sua actuação no sentido de obter a derrota do conselheiro Manuel Berardo nas eleições (realizadas em círculo uninominal, de acordo com a lei vigente na década de 1860), que constituem um dos fios condutores do romance. Manuel Berardo é deputado e candidato à reeleição pelo Partido Progressista, então na oposição. Seabra apoia a candidatura de uma personalidade estranha à região pelo partido do governo (Regenerador ?). O apoio governamental e uma estratégia de alianças, em parte assente no apelo às forças sociais mais conservadoras (o que envolve o combate contra a estrada em construção e contra o enterramento nos cemitérios, apesar da defesa anterior desses melhoramentos), em parte assente na exploração de ressentimentos pessoais contra actuações anteriores de Manuel Berardo, levarão Seabra à beira da vitória, que apenas lhe fugirá por um contratempo de última hora. Em suma, Seabra mostra-se um político hábil e sem escrúpulos programáticos ou morais (tal como, aliás, o seu adversário). No final, a vitória da oposição a nível nacional acarretará uma mudança de governo (talvez o pormenor mais irrealista do enredo do romance, visto que a substituição de um governo monopartidário por outro governo monopartidário como conseqüência de um resultado eleitoral foi algo que só aconteceu pela primeira vez em Portugal em 1995, cento e vinte e sete anos depois da publicação do romance em 1868) e Manuel Berardo, nomeado ministro, conseguirá atrair Seabra para o seu grupo político (e para o financiamento de alguns melhoramentos locais) com um título de visconde.
Em suma, Júlio Dinis traça neste romance a Eusébio Seabra o retrato algo depreciativo, sobretudo sob o ponto de vista cultural, que é habitual associar ao 'brasileiro' rentista.

*

É claro que nem todos os 'brasileiros' rentistas viviam no mundo rural. O Porto concentrava naturalmente um grande número, ao ponto de a sua presença dar um cariz especial a uma boa parte da cidade. É o que Júlio Dinis descreve no seu romance Uma família inglesa:

"Esta nossa cidade - seja dicto para aquelas pessoas que porventura a conhecem menos - divide-se naturalmente em três regiões, distinctas por fisionomias particulares.
A região oriental, a central e a occidental.
O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o brazileiro; o occidental, o inglez.
[…]
O bairro oriental é principalmente brazileiro, por mais procurado pelos capitalistas, que recolhem da America. Predominam neste umas enormes moles graniticas, a que chamam palacetes, o portal largo, as paredes de azulejo - azul, verde, ou amarelo, liso ou de relevo; o telhado de beiral azul; as varandas azues e douradas; os jardins cuja planta se descreve com termos geometricos e se mede a compasso e escala, adornados de estatuetas de louça, representando as quatro estações; portões de ferro, com o nome do proprietario e a era da edificação em letras também douradas; abunda a casa com janelas goticas e portas rectangulares, e a de janelas rectangulares e portas goticas, algumas com ameias, e o mirante chinez. As ruas são mais sujeitas a poeira. Pelas janelas quase sempre algum capitalista ocioso."

Note-se que de novo se encontra a ironia do escritor em relação ao mau gosto arquitectónico e decorativo típico dos 'brasileiros'.
No mesmo romance, surgem pelo menos duas outras referências interessantes ao 'brasileiro' rentista urbano.
Uma tem a ver com a sua presença "Na praça" (título do capítulo VIII), entenda-se na rua dita dos Ingleses, centro da vida comercial da cidade. Para além dos directores de bancos e companhias, dos comerciantes em nome individual, dos negociantes falidos, dos caixeiros, dos corretores, dos agentes de casas sediadas noutras praças, dos guarda-livros, dos filhos dos comerciantes, dos empregados das alfândegas e dos carrejões, o autor evoca

"[…] o brazileiro retirado, distrahindo-se a presenciar, como espectador, o labutar do negocio, à maneira de maritimo velho que se senta à beira-mar a olhar para as ondas, de que vive arredado já […]"

Outra tem a ver com uma avaliação informal por terceiros da fortuna de um 'brasileiro'. Enquanto um dos interlocutores afirmava que o dito 'brasileiro' não poderia dar à filha um dote de mais de nove contos, outro contrapunha o triplo dessa quantia, visto que avaliava a fortuna do pai em cerca de sessenta e sete contos. Para se ter uma ideia do que significariam estes números, note-se que o montante mais baixo estimado para o dote correspondia por si só a uma fortuna equivalente a cerca de quinze vezes a do português médio de então.


- O 'brasileiro' empresário.

O paradigma do 'brasileiro' empresário na obra de Júlio Dinis é a figura de José Urbano do conto "Justiça de Sua Magestade" inserido na colectânea Serões da Provincia.
É o próprio José Urbano que assim se define quando inquirido por alguém com quem acaba de travar conhecimento:

"- É negociante ?
- Às vezes. Quando me faz conta. Quero dizer, quando vejo probabilidades de bons resultados. No caso contrario, vivo dos meus capitaes. Cultivo a minha horta, enxerto as minhas fructeiras, e uma vez ou outra, por desfastio, trabalho em eleições. Assim vou vivendo."

Note-se como o viver dos capitais é especificado de forma que sublinha actividades realmente empresariais e não meramente rentistas e como também o 'brasileiro' empresário associa à sua actividade económica a actividade como influente político.
Porém, a forma como José Urbano é apresentado pela primeira vez no conto é ainda mais significativa. Está-se a 5 de Maio de 1852 e a família real encontra-se em visita ao Minho, percorrendo nesse dia o trajecto entre o Porto e Famalicão. Nesta última localidade a vereação municipal apresta-se para acolher suas magestades e altezas. A certa altura …

"[…] assomava no extremo da estrada […] um carro de grandes dimensões e de formas ainda não conhecidas alli, que, puxado por mais de uma parelha e envolvido em um turbilhão de poeira, se aproximava a toda a brida do logar onde o observavam estes anciosos espectadores.
- Ahi estão - disse um dos camaristas, conjecturando que não podia deixar de ser real um tão estranho meio de locomoção.
E a um signal dado, o morrão aproximou-se dos foguetes aprestados, e uma salva de girandolas subiu aos ares, quando o referido carro parava junto do arco triunfal.
[…]
A camara aproximou-se da portinhola.
Oh, desapontamento ! Em vez do que esperavam encontrar, apenas depararam com meia duzia de fisionomias que os olhavam sorrindo, como se compreendessem e saboreassem o equivoco.
Cahiram então em si.
Era uma das diligencias da Companhia Viação Portuense, que escolhera aquele dia solemne para inauguração das suas viagens."

Da diligência apeia-se José Urbano, o qual faz à vereação de Famalicão o elogio da inovação de que era um dos agentes nestes termos:

"Vocês, sem querer, saudaram um grande acontecimento - a inauguração da Companhia Viação Portuense, da qual eu possuo vinte e trez acções. Não sabem o que saudaram com esses foguetes ? Saudaram o Minho, saudaram Braga, saudaram o progresso, os melhoramentos desta nossa terra, o engrandecimento da provincia, do commercio e da agricultura. Não vos arrependaes, meus amigos: não choreis o dinheiro do Municipio, que estourou agora nos ares. São de bom agouro estes estouros. São palmas dadas a um grande cometimento."

Traçado o perfil de empresário inovador de José Urbano, vale a pena conhecer a sua história, tal como mais adiante a conta aos restantes protagonistas do conto:

"Cedo as minhas ambições principiaram a crescer. É sempre a mesma historia. Já não me contentava com os modestos, mas continuados, proventos que tirava do meu negocio de cereaes. Queria lucros mais visiveis.
O Brazil principiou-me então a sorrir com as suas promessas de riquezas, com que a tantos atrae. Não descansei mais enquanto não realizei o meu intento. […]
Seria curiosa e rica de experiencia a historia da minha vida no Rio de Janeiro, se o contá-la me não afastasse do fim que tenho em vista. Basta que diga que trabalhei ! Trabalhei deveras. Não me fazia hesitar qualquer trabalho, por penoso que fosse. Recusava apenas as empresas menos honestas.
Tive que sofrer e muito. Estive no Brazil por ocasião da Guerra da Independencia. Basta que diga isto. Mas a minha perseverança valeu-me e não me deixou soçobrar. […] No fim de oito [anos] podia-me dizer rico. Mais um anno no Brazil e voltarei para Portugal, disse eu comigo."

Importa reter alguns aspectos. Primeiro, a emigração para o Brasil não é apresentada como decisão apenas para quem estivesse em dificuldades, mas também para quem quisesse ir mais longe do que os negócios possíveis no Portugal da época. Segundo, a vida no Brasil surge de novo obscura, embora seja precisado que era difícil e que "as empresas menos honestas" (como o tráfico de escravos ?) se ofereciam tentadoramente. Terceiro, parece possível o emigrante tornar-se rico num intervalo entre um lustro e uma década desde que perseverasse.
O confronto desta história pessoal de emigração com a de Eusébio Seabra atrás evocada revela, no fundo, semelhanças fundamentais. A maior diferença é a prosperidade mais rápida, que se poderia julgar baseada num ponto de partida mais favorável. As grandes diferenças surgem depois do regresso - à ociosidade e ostentação do rentista, contrapõe-se a iniciativa do empresário.
Curiosamente, o escritor transporta este contraste igualmente para a residência da personagem. A quinta onde José Urbano vive nos arredores de Braga …

"Era uma agradavel vivenda, circundada por um viçoso quintal todo orlado de limoeiros, e onde florejavam as mais formosas japoneiras e magnolias de algumas legoas em redor. Penduravam-se pelos muros festões virentes de jasmins e balsaminas, em volta dos quais zumbia incessante um buliçoso enxame de abelhas, atrahidas pelos aromas suaves que se exalavam em torno. Na extensão destes muros abriam-se sobre o jardim duas janelas de grades, através das quais se descobria a abundante verdura daquele perfumado recinto, e de fora se escutava já o murmurio continuo e monotono de uma cascata, que derramava a frescura e a vida por toda aquela vegetação interior. Respirava-se ali uma tranquilidade que deliciava o coração. O horizonte, que rodeava esta pitoresca residência, era extrememente aprazivel."

Por outras palavras, se algo distinguia a casa de José Urbano de uma residência de abastado proprietário rural minhoto, era a sua especial beleza natural, e mesmo poesia, e não os traços típicos da casa de 'brasileiro' encontrados noutros trechos.
Se alguma atitude de ironia aparece em elementos da caracterização de José Urbano, é na descrição dos seus apetrechos de viagem. Quando se desloca na sua vida de negócios:

"José Urbano montava uma egoa corpulenta, mas não de raça apurada. Um chapeo de palha de amplissimas abas, prezo por uma fita por baixo da barba, um barrete preto subjacente que lhe defendia as orelhas de um leste em perspectiva, que a sua sciencia meteorologica prognosticava iminente; oculos verdes, baluarte contra a invasão da poeira; guarda-sol minhoto, com honras de barraca , mas o unico que tem razão de ser; um capote de camaleão, verdadeiro epigrama ao sol da Primavera; galochas capazes de arrostar com o diluvio ao lado da arca; alforges replectos, uma cabaça a tiracolo, diante de si uma trouxa e na garupa uma pequena mala; tal o conjunto de acessorios que concorriam para o efeito prodigiosamente comico do recem-chegado."

Em qualquer caso, à ironia junta-se uma apreciação funcional do "conjunto de acessorios" que acompanha José Urbano. Homem prático e eficiente, ainda que talvez exageradamente cauteloso e pouco respeitador de certas convenções, eis a mensagem que o escritor parece querer transmitir sobre o 'brasileiro' empresário.


- O 'brasileiro' fracassado.

O paradigma do 'brasileiro' fracassado na obra de Júlio Dinis é a figura de Agostinho do conto "O espolio do senhor Cipriano" inserido na colectânea Serões da Provincia.
Uma vez mais o aparecimento do personagem na história é significativo. Cipriano Martins morrera, deixando sua irmã Maquelina Martins com quem vivia, em extrema pobreza, apesar de ser voz corrente que era rico e avarento.

"Um dia, porém, pioraram, longe de se desanuviarem, as circunstancias de Maquelina.
Um sobrinho seu, filho de uma irmã que morrera jovem, voltou do Brazil e, contra o que era de esperar, vinha como partira, isto é, com a riqueza de Job na desgraça."

Uma vez mais, o que se passara no Brasil fica obscuro. O escritor ilude o assunto com o seguinte parágrafo:

"A historia deste rapaz é uma historia longa e curiosa, que desta vez não contarei ao leitor."

Este sobrinho e afilhado de Maquelina, Agostinho, passa a viver com a tia e madrinha, mas isso não melhorou a situação dos dois, porque …

"Emprego não o pôde ele obter. Naquela cidade, como em muitas outras terras do reino, não se vêem com bons olhos os infelizes que voltam do Brazil pobres. Lá parece uma prova de pouco espirito e de nenhuma aptidão a essa boa gente um semelhante sucesso. O Brazil é, para ela, como um campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso, ou morre-se combatendo. Fugir é de cobardes."

É assim claro por que razão não existe uma imagem mais diversificada do 'brasileiro' na sociedade portuguesa de oitocentos. Não se volta do Brasil pobre, porque é difícil e porque seria vergonhoso. Voltando-se rico, como é considerado normal, prefere-se a ociosidade e a ostentação à actividade empresarial.
Pouco mais é acrescentado de relevante para a caracterização do 'brasileiro' fracassado neste curto conto. Emigrado e retornado sem recursos significativos (tivera de trabalhar como moço de navio para pagar a passagem de volta), Agostinho trazia, de qualquer modo, uma vantagem da sua emigração brasileira: o alargamento dos seus horizontes culturais. É isso que lhe permite identificar as notas de banco em que o falecido tio materializara a sua fortuna e que Maquelina não reconhecia como dinheiro, provocando com a descoberta a morte da madrinha devido à emoção da notícia. E é isso que lhe permite depois envolver-se em "especulações commerciaes" com as quais "conseguiu multiplicar o capital tão inesperadamente herdado", assegurando a sua prosperidade futura. O 'brasileiro' fracassado transforma-se, assim, num empresário.


3 - Imagem apresentada e imagem retida.

Como se caba de mostrar, é possível encontrar na obra de Júlio Dinis uma imagem diversificada e rica do 'brasileiro', que ultrapassa o estereótipo do 'brasileiro' rentista. Na verdade, o escritor apresenta igualmente figuras de 'brasileiro' empresário e de 'brasileiro' fracassado. Não é, portanto, verdade, que tenha sido preciso esperar pelo século 20 para encontrar uma imagem alternativa ao 'brasileiro' rentista - a grande novidade de Ferreira de Castro é sim trazer para o primeiro plano a vida no Brasil, que ficara quase totalmente obscura na obra de Júlio Dinis.
Por que é que, então, dessa imagem diversificada só foi retido o estereótipo do 'brasileiro' rentista ? Duas explicações são possíveis para o facto.
A primeira explicação é de natureza literária. A Morgadinha dos Canaviais é, como SARAIVA, 1961 e SIMÕES, 1962 notaram, uma obra-prima a que circunstâncias sociológicas diversas que não importa esmiuçar aqui deram uma popularidade significativa e duradoura. Os Serões da Província são, independentemente do seu valor e do seu interesse, um conjunto de obras menores. É natural que a figura da obra mais importante tenha tido possibilidade de se impôr em termos relativos.
A segunda explicação, provàvelmente mais relevante, é de natureza sociológica. O 'brasileiro' rentista, com o seu desafogo económico, a sua ociosidade e o seu consumo ostentatório, constituía, provàvelmente, uma maioria entre os 'brasileiros'. E mesmo que quantitativamente assim não fosse, a impressão qualitativa deixada na opinião pública por esses actores sociais relativamente exóticos era, com certeza, maior do que a deixada por pessoas de actividades mais comuns, como os 'brasileiros' empresários, ou por pessoas cujo exemplo não era òbviamente invejado, como os 'brasileiros' fracassados. É natural que a figura que correspondia à maioria e ao tipo mais impressionante de 'brasileiro' perdurasse mais do que as figuras que correspondiam à minoria e aos tipos menos destacados.
Resta notar que é para o 'brasileiro' empresário e não para o 'brasileiro' rentista que vai a simpatia do escritor. Isso, porém, não é mais do que a natural projecção a este nível das ideias de Júlio Dinis sobre as vias de progresso da sociedade portuguesa - para ele, o empresário, e particularmente o empresário agrícola, valorizador dos recursos naturais do país, é o único obreiro possível da regeneração da sociedade portuguesa (do arranque do crescimento económico moderno em Portugal, poder-se-ia dizer), como o enredo dos seus romances e contos com toda a clareza mostra. Esta discussão, levar-nos-ia, todavia, para além dos objectivos desta comunicação.

Nuno Valério - Docente do ISEG / UTL

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