I CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA

 

A exclusão social : um processo estrutural e biográfico


1. Introducão
A exclusão social transformou-se, para os países industrializados, num tema da ordem do dia nas últimas décadas do século XX à semelhança do que acontecera com o tema do pauperismo durante o século XIX. Quer um, quer outro, marcam, a seu tempo, a chamada "nova questão social". Embora estes temas encerrem algumas diferenças, nomeadamente quanto ao seu contexto histórico, ambos apresentam uma característica comum; exprimem uma condição de privação. Castel (1996), no seu artigo sobre "os marginais na história" mostra-nos claramente como os fenómenos da marginalidade não são de geração espontânea; têm antecedentes históricos mais ou menos longínquos não se resumindo a uma situação meramente conjuntural. Serge Paugam, num texto sobre a ex-clusão em França refere que o pauperismo caracterizava a entrada na sociedade industrial antes das conquistas sociais e dos regulamentos estatais, enquanto a exclusão traduz a crise estrutural dos seus fundamentos, depois de várias décadas ao longo das quais a miséria parecia ter desaparecido (Paugam, 1996:8).
Em Portugal os fenómenos da pobreza e da exclusão não seguiram o ritmo francês. Entre nós a pobreza, embora negligenciada, sempre existiu em larga escala. A forte emigração e o êxodo rural são testemunhos dessa realidade. Por outro lado, a nossa industrialização foi fraca e tardia, aparecendo já na segunda metade do século XX, adiando, internamente, os seus efeitos. Apesar disso, não nos libertámos da crise da industrialização. Assistimos ao aumento do desemprego, e em especial o de longa duração, e simultaneamente avolumam-se as situações de marginalidade onde a pobreza e o isolamento proliferam. Mais do nunca esta realidade tornou-se fonte de mal-estar social, constituindo uma verdadeira preocupação para os políticos e investigadores.
Para os sociólogos o termo exclusão é ambíguo e apresenta-se mais como uma noção social do que como um conceito sociológico. Na linguagem da economia, Bernard Gazier refere que a exclusão é um termo de origem recente mas não é um conceito da teoria económica uma vez que designa a situação e a trajectória de grupos cujo nível e situação de vida os afasta da participação na comunidade de um país, facto que no seu entender ultrapassa claramente as dimensões económicas por implicar em primeiro lugar as dimensões sociais, psicológicas e políticas (Gazier,1996:42). Claude Dubar considera que a primeira condição para a pesquisa científica da exclusão consiste em considerá-la como uma construção social, ou seja, como um produto histórico de mecanismos sociais e não como um "estado" resultante de atributos individuais e colectivos (Dubar,1996:111). Segundo este autor, os fenómenos actualmente designados com o termo exclusão nem sempre existiram como tal, uma vez que são resultantes de transformações recentes nos funcionamentos "estru-turais" das instituições chaves da vida económica e social, instituições essas que contribuem para fornecer aos indivíduos recursos financeiros e um status social (Dubar,1996:111). Para entender e explicar a exclusão é indispensável analisar as evoluções ao nível das políticas de emprego, das regras de funcionamento do mercado de trabalho, das transformações familiares, das políticas urbanas e, em especial, dos bairros periféricos. Instituições como a empresa, a escola, a família e o meio ambiente físico e social produzem exclusão. Admitindo que não se trata de uma noção inteiramente nova, acontece que ela nunca foi tão utilizada como nos nossos dias. Tornou-se intolerável, incómoda e, pior que isso, a população em risco não pára de aumentar. Este facto constitui uma prova evidente da sua actualidade transformando-se numa questão quase banal nos comentários jornalísticos, nos programas políticos e nas acções sociais sobre o terreno. Por outro lado, a pobreza que geralmente aparece como fenómeno associado à exclusão apresenta, porém, outras característi-cas; tem uma existência muito mais longa e apesar de ter afectado e de continuar a afectar vastas camadas da população, foi, por muito tempo, uma questão quase esquecida e adiada. Apesar de diferentes nas suas origens é frequente ambos os conceitos aparecerem associados apresentando, por vezes, alguma complementaridade e um cenário comum caracterizado pela precaridade de emprego, pela ausência de qualificação, pelo desemprego de longa duração, pela perda de relações sociais e, sobretudo, por uma incerteza face ao futuro (Castel, 1995).
Qualquer destes fenómenos suscitam grande indignação e dão origem a pesquisas e ao aparecimento de programas de intervenção, uma vez que a sua visibilidade e consequências são hoje vividas de uma forma mais dramática, e estigmatizante do que em épocas passadas. No entanto, a situação tem-se agravado ao mesmo tempo que se fala cada vez mais dos direitos fundamentais do cidadão e do processo de desenvolvimento das sociedades, parecendo, por isso, evoluir num sentido contrário ao dos princípios democráticos. A mudança social e o processo acelerado de desenvolvimento e de reestruturação sócio-económica, a crise económica e a profunda transformação cultural, social e tecnológica avolumaram drasticamente os fenómenos da exclusão e da pobreza não se encontrando, de imediato, meios de combate suficientemente eficazes. Paralelamente verifica-se uma certa inca-pacidade de se criar medidas eficientes e continuadas para enfrentar satisfatoriamente a resolução destes problemas.
Em regra, os pobres e os mais desfavorecidos são as principais vítimas da exclusão, todavia, nem todos os excluídos são pobres. Na maioria dos casos a exclusão emerge de condições de pobreza familiar endémica ou de novas formas de empobrecimento com que os cidadãos inesperadamente se confrontam, como consequência dos efeitos da mudança social, de degradação moral ou de "dessocialização". É essencialmente em torno destas condições que iremos desenvolver o tema desta co-municação.
2. A especificidade da pobreza e da exclusão em Portugal

2.1. A probreza enquanto fenómeno constante

A pobreza é um fenómeno que se mantém fortemente enraizado no tecido social português e era tão generalizada em algumas zonas que se confundia com uma situação "normal". Enquanto se man-teve como fenómeno generalizado a pobreza não contituía factor de exclusão nem esta era ainda uma construção social na sociedade portuguesa. Talvez por isso, fosse mais esquecida e tolerada. Este facto foi uma consequência directa do desenvolvimento assimétrico do nosso país que agravou ainda mais as debilidades da sua estrutura produtiva, debilidades que actualmente se mantêm. Mediante tais condicionalismos, a pobreza manteve-se como um problema de ordem estrutural e nunca como um problema "residual". Como agravante, a economia portuguesa não reunia condições para pôr em prática o projecto de sociedade que se seguiu à 2ª Guerra Mundial que assentava no equilíbrio entre o crescimento económico e a repartição da riqueza, princípio que daria lugar à so-ciedade de "bem estar" onde o Estado Providência garantia a protecção social mínima aos in-divíduos e famílias, que por qualquer circunstância se encontravam excluídos do processo de repar-tição da riqueza. Perante esta desprotecção a pobreza manteve-se muito elevada até aos anos oitenta.
Estudos referentes ao período entre 1980 e 1990 revelaram que a pobreza tinha diminuido em Por-tugal. Todavia, numa comparação internacional patrocinada pela OCDE, Portugal figurava como um dos países onde permaneciam as maiores desigualdade na distribuição do rendimento e do consumo. Este situação é resultante do modelo dualista e desfasado de desenvolvimento do nosso território sendo apontado como o principal responsável pelas profundas assimetrias regionais cujos danos económicos e demográficos se mantêm irreversíveis; não se conseguiu até hoje atenuar a con-centração demográfica nas grandes áreas metropolitanas onde se criaram alguns polos de desenvol-vimento e de concentração de riqueza, permitindo que em seu redor proliferassem, também, vastas manchas de pobreza. O despovoamento e a estagnação do interior rural prossegue e enquanto esta situação se mantiver os portugueses vão continuar a pagar um "preço" bastante elevado pela opção política da litoralização do país. Por outro lado a manutenção de uma política de desenvolvimento económico onde ainda predomina uma agricultura de tipo tradicional e pouco produtiva aliada a um tecido empresarial composto essencialmente de pequenas e médias empresas de sectores, igualmente tradicionais, têm contribuído para que vastas camadas do nosso tecido social continuem excluídas do processo de repartição da riqueza, e, consequentemente, impedidas de exercer a capacidade de escolha no que respeita ao consumo de bens e serviços.
Por outro lado, o perfil de pobreza exige uma redefinição sistemática uma vez que assume contornos e formas de visibilidade que em dado momento se tornam intoleráveis para a população de um país que se diz livre e democrático e que reconhece como direito fundamental do cidadão o acesso a uma vida digna. Apesar das desigualdades se terem atenuado durante os anos oitenta continuamos no final da década de noventa com níveis de incidência de pobreza muito elevados e com uma per-centagem significativa da população com padrões de vida abaixo do limiar de dignidade devido à sua incapacidade económica.
Para atenuar as desigualdades e a exclusão partiu-se recentemente para a experiência do rendimento mínimo garantido, embora se saiba que esta medida, só por si, sem políticas paralelas e sem um acompanhamento fortemente socializante serão insuficientes para combater as situações de marginalidade correndo o risco de não cumprir satisfatoriamente o objectivo de reinserção social dos seus beneficiários. No caso português, com o rendimento mínimo garantido pretende-se agora criar um novo direito que se materializa num contrato com o Estado, mas que terá forçosamente de conter uma forte componente pedagógica de adaptação aos novos condicionalismos sociais, uma vez que estes nada têm de comum com a sociedade portuguesa que herdámos dum passado muito recente. Portugal é hoje um país nitidamente caracterizado por uma modernidade tardia. A nossa sociedade diferenciou-se rapidamente e aconteceu de tal modo que as desigualdades tornaram-se muito mais visíveis e incómodas.
Recorde-se que há trinta anos Portugal ainda não era um país moderno, grande parte da sua popu-lação era analfabeta e extremamente modesta, de horizontes limitados, onde a ambição era privilé-gio de uma minoria, facto que era perfeitamente compatível com o sistema de valores veiculados pela ideologia do Estado Novo.
Os sistemas familiares da época eram estáticos, sustentados por um sistema de valores tradicional-istas e autoritários, revelando, por isso, fraca capacidade de diferenciação. Enquanto o país se manteve estático, com fraca mobilidade, onde tudo era previsível e pré-determinado, os comporta-mentos individuais e familiares apresentavam uma relativa homogeneidade e um grande imobilismo ao longo das gerações. A rigidez dos valores e dos comportamentos limitou as capacidades de ino-vação e de incentivo das competências familiares e pessoais na gestão dos ciclos de vida. Neste contexto, o empenho na socialização primária e secundária dos indivíduos era essencialmente marcado pelas condições de origem, pela manutenção dos laços e da identidade cultural, ou seja pela continuidade dos traços culturais, facto que, na grande maioria das famílias se limitava à repetição e continuação das rotinas que estavam praticamente cristalizadas.
Actualmente, tudo mudou na sociedade portuguesa. Com as conquistas democráticas e com as novas dinâmicas adquiridas, nomeadamente as resultantes da adesão à União Europeia, que vieram acrescer os nossos compromissos políticos, económicos e sociais, entrámos num processo de rápida complexificação da sociedade e da vida dos cidadãos donde resultam, inevitavelmente, alguns des-fasamentos que se traduzem de uma forma imediata, e que afecta em doses variáveis todos os grupos de idade, provocando um aumento dos riscos, das incertezas e da insegurança, quer em relação ao presente, quer em relação futuro. Os horizontes e as oportunidades alargaram-se mas os ris-cos também uma vez que as instituições e as estruturas sociais mudaram as regras de funciona-mento.
O aumento progressivo do desemprego em todos os ramos de actividade, e principalmente do de-semprego de longa duração, veio aumentar o contingente de indivíduos dificilmente recicláveis e reintegraveis noutra actividade, não só pela idade, como pela sua inaptidão cognitiva e/ou psico-motora. Pela primeira vez, uma grande parte dos indivíduos e das famílias portuguesas são confrontadas seriamente com as suas limitações face às exigências de uma sociedade que se transfor-mou rapidamente e que impôs novas regras no mercado de trabalho. Grande parte delas viram-se obrigadas a tornarem-se autosuficientes e de iniciarem uma actividade por conta própria por não conseguirem um lugar no mercado de trabalho.
Este desafio põe-se igualmente a diplomados e a não diplomados, embora as situações de partida sejam muito distintas. A exclusão é um processo que atinge mais facilmente determinadas catego-rias de pessoas ao longo da sua existência. As actuais condições de vida dificilmente permitem criar cenários estáveis e definitivos. A capacidade de previsão passou a ser afectada por factores exteriores ao indivíduo e à sua família, e mesmo exteriores à sua própria sociedade, factores esses que aumentam os riscos de percurso na tragetória de vida e que escapam muito mais facilmente ao nosso controlo. A noção pacífica, natural e meramente transitória que os portugueses tinham das diferentes fases do seu ciclo de vida fragilizou-se uma vez que as certezas são cada vez mais efémeras e as crises ou problemas que daí resultam são mais difícies de ultrapassar. Neste contexto, para os mais frágilizados é cada vez mais problemático estabelecer metas e concretizá-las. A forma mais prudente de planear objectivos a médio e longo prazo é sem dúvida através de um planeamento do tipo contingente onde se podem idealizar várias alternativas possíveis e enveredar por uma que, à luz dos condicionalismos de cada momento, e baseada numa informação rigorosa, oferecer as melhores condições de êxito. Mediante tais dificuldades é fácil perceber que apenas quem domina uma informação extremamente exigente e profissionalizada, e que além disso muda a uma velocidade vertiginosa, consegue contornar e entender os mecanismos que comandam o leque de oportunidades possíveis de que cada um dispõe para viver com alguma segurança em todas as fases do seu ciclo de vida e obviar os condicionalismos particulares inerentes à sua situação individual, familiar ou profissional.

2.2. Mecanismos estruturais produtores de exclusão

Para os investigadores da exclusão o sistema produtivo, na sua génese e em toda a sua extensão, funciona como o principal mecanismo, mas não o único, que gerou esta forma recente de marginali-zação social. O sintoma mais profundo desta realidade revelou-se na subida de um novo tipo de desemprego que segundo Wuhl (1992) é por vezes designado pelo termo de "desemprego de exclusão" e que afecta, sobretudo, indivíduos com mais de quarenta anos, privados de emprego de uma forma durável; são os chamados "desempregados de longa duração"(Dubar, 1996:112). Paralelamente a estes acontecimentos assite-se a uma verdadeira mudança do sistema produtivo que passa a utilizar novos formas de gestão do emprego na grande maioria das empresas, e também do Estado. Segundo (Clerc,1992) esta constatação levou muitos autores a insistirem na necessidade de se estudar as raízes deste novo processo de exclusão nas evoluções registadas no funcionamento do mercado de trabalho, e em particular, nos mecanismos de contratação. Recentemente a tese de Dubernet (1995), baseada em estudos de caso sobre a contratação de pessoas em empresas privadas francesas, confirmou o funcionamento da discriminação em relação aos que não correspondiam aos critérios ditos de "competência" da nova norma de emprego que se caracteriza, essencialmente, pelas seguintes características: autonomia, iniciativa, responsabilidade (Dubar, 1996:112). Além disso, o mesmo autor evidenciou que a posse de um diploma escolar funcionava, na maioria dos casos, como filtro, mas era sobretudo a capacidade de antecipar as expectativas do empregador e de manifestar con-formidade com ele que se tornava decisiva.
Partindo do princípio de que esta tendência tende a generalizar-se nas formas de contratação nas sociedades ditas modernas, facilmente se deduz que a capacidade de emprego está socialmente condi-cionada pelas tragetórias anteriores dos indivíduos e pela sua rede de relações. Aqueles que não beneficiaram, logo de início e continuamente, de uma socialização qualificada e que não tenham o suporte de uma rede de relações sociais que lhe ofereçam uma oportunidade e que façam valer as suas potenciais capacidades correm sérios riscos de serem eliminados.
Ao longo da última década, na sociedade portuguesa, e à semelhança do que se passa nos restantes países europeus, têm-se verificado as mesmas características: aumento da selectividade na contratação, aumento dos empregos qualificados de "precários" (tratando-se de contratos de duração limi-tada, contratos de interinidade, de empregos "ajudados" como os trabalhos de utilidade colectiva - TUC - e contratos de emprego-solidariedade -CES), aumento do número de licenciamentos colectivos e de saídas da vida activa em situação de pré-reforma. Estas evoluções têm sido as principais responsáveis pelo aumento do desemprego de longa duração (mais de um ano) e que afecta particu-larmente os trabalhadores com mais idade, os jovens não diplomados e os assalaridos com "baixos níveis de qualificação".
Com a adesão à União Europeia, Portugal assumiu novos compromissos que tem procurado con-cretizar. Presentemente vivemos uma época em que as transformações estruturais da sociedade portuguesa se sucedem a um ritmo acelerado e com tendência a intensificar-se. Este processo é inevitável tendo como finalidade a modernização do sistema produtivo, processo esse, que passa pela introdução de novas tecnologias e pela reestruturação dos vários sectores de actividade. A consequência mais imediata foi o aumento do desemprego em virtude da supressão de muitos postos de trabalho e do encerramento de muitas empresas. O actual mercado de trabalho é muito mais exi-gente em mão-de-obra qualificada apostando essencialmente na racionalização da actividade produ-tiva e na automatização. Isto significa que determinadas categorias sócio-profissionais correm risco imediato de se tornarem obsuletas, enquanto outras, que anteriormente apresentavam níveis razoáveis de integração e cujo perfil sócio-económico e cultural se aproximavam dos valores médios do país, tendem a tornar-se cada vez mais vulneráveis. Este facto é responsável pelo agravamento do fenómeno da exclusão social.
Como agravante deste cenário assistimos progressivamente ao reforço da vulnerabilidade dos "po-bres tradicionais" cuja integração é cada vez mais problemática. Além disso, este fenómeno acon-tece em simultâneo com mudanças demográficas e sociais não menos importantes, e que criaram um contexto muito mais adverso à reintegração dos grupos vulneráveis e dos excluídos. Referimo-nos, por exemplo, à alteração das estruturas familiares e consequente enfraquecimento das solidariedades; ao envelhecimento da população; à crise financeira do sistema de segurança social para a qual contribuiram vários factores, entre eles, os demográficos e sociais, a crise sócio-económica e a consolidação do mercado de trabalho dual resultando daí uma dimimuição das receitas.
Presentemente a nossa situação é muito mais grave uma vez que herdámos os mecanismos de ex-clusão tradicionalmente associados à geração, mecanismos esses que eram responsáveis pela per-sistência e pela reprodução da pobreza, e, além disso, somos confrontados com o aparecimento de novos mecanismos de exclusão e de novas vulnerabilidades sociais. Segundo estudos de Manuela Silva (1990), o crescimento da economia portuguesa nos últimos anos, nomeadamente entre 1986-89 caracterizou-se pelo agravamento das desigualdades na repartição do rendimento. Para exempli-ficar Manuela Silva (1990) refere-se ao aparecimento de novos pobres e de novos ricos que têm acompanhado o processo de transformação das estruturas sócio-económicas do país como sintomas bastante evidentes de que a polarização social se acentuou persistindo a tendência para se agravar. Por outro lado verificou que durante esse período manteve-se uma grande disparidade salarial entre Ramos de Actividade constatando "o alargamento dos desvios dos salários entre os níveis de quali-ficação mais elevados e os mais baixos" (Silva, 1990).
Segundo Bruto da Costa (1993), em 1989 Portugal contava com dois milhões de pobres, consider-ando nesta categoria todos os indivíduos cujas despesas eram insuficientes para cobrir as necessida-des básicas. Em termos de famílias, cerca de 10% delas tinham um nível de despesa que não chegava para assegurar uma alimentação saudável. Presentemente a situação não parece ter melho-rado.

Segundo o Observatório Europeu sobre as Políticas de Combate à Exclusão Social considera-se que «que os indivíduos estão numa situação de 'exclusão social' quando:

a) sofrem de desvantagem generalizada em termos de educação, formação profissional, emprego, habitação, recursos financeiros, etc.;
b) as suas possibilidades de acesso às instituições sociais que asseguram essas oportunidades de vida são substancialmente menores do que as que têm o resto da população;
c) tais desvantagens e reduzido acesso persistem ao longo do tempo» (Room, 1990, cit. por D. Robbins, in Marginalization and social exclusion, 1990).

No segundo relatório português do Observatório Europeu sobre as Políticas de Combate à Ex-clusão Social, Pereirinha (1992) refere que o «conceito de exclusão social corresponde à não-realização de direitos sociais básicos formalmente garantidos aos cidadãos pela lei-fundamental»

Se analisarmos estas noções de exclusão social verificamos que ambas referem a existência de uma série de mecanismos interdependentes e realçam o carácter multidimensional e cumulativo dos proc-essos de exclusão. Além disso denunciam claramente a negação do princípio da igualdade de oportunidades embora este seja um dos fundamentos das sociedades democráticas.
Os principais mecanismos de empobrecimento situam-se em domínios que estão directa ou indirec-tamente associados ao rendimento das famílias. Estes adquirem especial importância numa econo-mia de mercado como a nossa e mais ainda no meio urbano onde o acesso aos bens e serviços que se destinam à satisfação das necessidades básicas depende exclusivamente do poder aquisitivo das famílias. Entre esses mecanismos de empobrecimento e pela sua influência na produção e perpec-tuação de situações de exclusão social salientamos alguns aspectos referentes ao mercado de trabalho, ao sistema educativo, à segurança social, à política de habitação, e ao sistema de saúde.
Quanto ao mercado de trabalho, no que se refere à população activa, estão identificadas quatro situações-tipo que geram empobrecimento:

_ os trabalhadores com vínculos precários de trabalho ou sem qualquer vínculo;
_ os trabalhadores por conta própria que exercem a sua actividade através de modalidades de trabalho clandestino;
_ os trabalhadores com baixas qualificações profissionais e inseridos em ramos de actividade onde o nível de salários é baixo;
_ os desempregados em geral e, os que enquanto trabalharam tiveram um tipo de inserção marginal que os exclui das prestações sociais.

Estas situações correspondem a formas de vida bastante instáveis conduzindo facilmente a uma forte incidência de comportamentos desviantes como a toxicodependência, a prostituição e a delinquência. Os jovens, por constituirem o principal alvo dos apelos da sociedade de consumo são os mais atingidos, caindo facilmente em comportamentos marginais quando não conseguem encontrar um trabalho estável e bem remunerado. Estes comportamentos são, simultaneamente, uma conse-quência e um efeito perverso de um processo de marginalização que se inicia bastante cedo com o abandono precoce (exclusão) do sistema educativo e que mais tarde continua a produzir os seus efeitos com a exclusão do mercado de trabalho formal.
No que se refere ao sistema educativo persistem determinados problemas que não foram superados apesar dos esforços do Ministério da Educação na promoção do sucesso escolar. As tentativas ensaiadas demonstram que a escola tem-se revelado pouco eficaz na superação dos handicaps culturais e incapaz de interessar as crianças e os jovens oriundos dos meios mais desfavorecidos. Estes meios caracterizam-se pela reprodução intergeracional de um baixo «capital cultural» sendo extre-mamente difícil alterar esta tendência, principalmente, se ao insucesso escolar aliarmos as carências económicas das suas familias, o que em nada favorece a continuação dos estudos. Por outro lado, muitos pais ainda investem pouco na escolaridade como factor de promoção social, e, como eles próprios têm um baixo «capital cultural» não reunem condições para apoiarem, acompanharem e estimularem os seus filhos no prosseguimento dos estudos. Em regra, o abandono precoce da escola está associado a problemas de subsistência e à necessidade de aumentar o rendimento familiar. É frequente nestes meios os pais e os próprios jovens alegarem que não gostam de frequentar a escola, ou que não têm capacidades inatas para aprender, verificando-se uma certa aceitação, ou mesmo uma predisposição para o insucesso escolar. É comum nestes meios as raparigas abandonarem o sistema de ensino para se ocuparem do trabalho doméstico, libertando as mães para o trabalho re-munerado. Muitos dos jovens que abandonam precocemente a escola entram no mundo do trabalho antes da idade mínina legal engrossando as nossas estatísticas sobre o trabalho infantil. Se, por um lado, o ingresso precoce no mercado de trabalho permite ao jovem começar a auferir mais cedo algum rendimento e alguma experiência profissional, por outro lado, como foi afastado da escola, isso implica que ele fique com dificuldades acrescidas de ter acesso a uma formação profissional específica, e, consequentemente, terá uma alta probabilidade de permanecer em trabalhos não qualifi-cados, precários e mal remunerados durante a sua vida (M. Silva, 1992). Por outro lado estudos recentes revelam que o nível de instrução é uma variável cada vez mais influente na situação de pobreza dos indivíduos. As características do sistema de ensino aliadas às novas complexidades do mercado de trabalho representam factores determinantes na reprodução do ciclo vicioso da pobreza e da exclusão social.
No que respeita ao sistema de segurança social a crise tem-se agravado devido ao facto da relação entre a proporção de activos por cada pensionista ser cada vez menor. As famílias que sobrevivem à mercê de um representante inactivo encontram-se numa situação extremamente vulnerável face à exclusão social e têm uma alta probabilidade de viverem situações de pobreza. Bruto da Costa (1993) revela-nos que em 1989, 57% das famílias pobres eram representadas por pensionistas. Em Portugal, a generalidade das prestações da segurança social são tão baixas que uma família (principalmente se viver em meio urbano) que dependa exclusivamente dessa fonte de rendimentos dificil-mente escapará à pobreza. Esta situação agrava-se se as trajectórias profissionais das pessoas se caracterizaram por baixos salários e por períodos de quotização para a segurança social reduzidos e/ou irregulares ou mesmo inexistentes. A crise do sistema de segurança social não se deve, apenas, às mutações sócio-demográficas, mas também, aos efeitos das mudanças no sistema de emprego que têm provocado uma crescente dualização e segmentação do mercado de trabalho. Estas medidas, se por um lado, têm permitido enfrentar a crise de acumulação e a resolução dos problemas da economia e das empresas, por outro, têm implicado no decréscimo das contribuições destas à segurança social, o que contribui para a sua ruptura, uma vez que as empresas recorrem cada vez mais a estratégias de exteriorização física e jurídica do emprego e à utilização de trabalho clandestino. Os mais penalizados pela ruptura do sistema são os sectores sócio-profissionais mais vulneráveis.
Para além dos mecanismos mais gerais de exclusão que acabámos de referir existem outros com incidência local relacionados mais directamente com dois direitos sociais básicos: a habitação e a saúde. A falta de condições satisfatórias para o exercício destes direitos tem implicações ao nível da exclusão social, uma vez que vai repercutir-se em múltiplos aspectos das condições de vida dos in-divíduos e das famílias, nomeadamente, na estabilidade, na rentabilidade do trabalho, no sucesso escolar, na participação e inserção social. As políticas de habitação não conseguem, em tempo útil, dar uma resposta satisfatória aos mais necessitados. Esta situação é mais evidente nos principais centros urbanos onde encontramos vastos sectores da população a viver em autênticos gethos sem o mínimo de infraestruturas de conforto e de salubridade. Estas condições constituem, por si só, um verdadeiro estigma social e um importante factor de exclusão e de marginalização. A persistência de tais condições tem a agravante de contribuir para que essas populações interiorizem uma identidade negativa, o que dificulta ainda mais a sua reinserção social.
No domínio da saúde deparamo-nos, de igual modo, com situações de exclusão bastante graves. Embora a saúde seja um dos direitos sociais básicos formalmente garantido pela Constituição Por-tuguesa, os estratos sociais mais desfavorecidos não usufruem de condições económicas mínimas que lhes permita ter acesso aos cuidados de saúde. A situação é mais grave nas famílias de baixos rendimentos, principalmente nas que têm elementos mais idosos, ou que sofrem de deficiências ou de doenças crónicas.
São muitos os problemas sociais e as vulnerabilidades que surgem em torno das deficientes con-dições de vida das famílias que vivem em situação de pobreza e de exclusão. Os mais comuns, se-gundo a actualização do diagnóstico técnico que tem acompanhado permanentemente o trabalho no terreno das equipas de projectos de luta contra a pobreza, nomeadamente das enquadradas no Pro-grama POBREZA III (1994) resumem-se a:
_ deficientes condições de alojamente, predominância de habitat degradado, insalubre, sobreocupado e sem o mínimo de conforto;
_ baixos níveis de escolaridade;
_ elevadas taxas de insucesso escolar e de abandono precoce dos estudos, desajuste escolar;
_ falta de formação profissional;
_ elevadas taxas de desemprego, desemprego de longa duração, desemprego sem protecção social;
_ precaridade económica (rendimentos insuficientes do trabalho ou da segurança social para satisfazer as necessidades básicas, endividamento, ausência de rendimentos, má gestão dos recursos);
_ dificuldades de inserção no mercado de trabalho, emprego precário e com maior incidência na economia informal ou «subterrânea» (trabalho precário, insegurança no trabalho, desajuste profis-sional);
_ forte incidência de problemas de saúde agravados pela desprotecção social (doenças crónicas, alterações de comportamento, dependência física, deficiências várias, não aceitação da doença);
_ insuficiência de equipamentos sociais;
_ degradação das relações familiares (instabilidade, negligência, maus tratos, abandono, separação, má inserção familiar, isolamento, monoparentalidade, famílias numerosoas, outras);
_ degradação individual (perda de auto-estima, ausência de expectativas, resistência à mudança, de-pendência dos serviços de assistência, desconhecimento de direitos);
_ forte incidência de condições de marginalidade (toxidependência, prostituição, actividades marginais, outras);
_ desprotecção social (baixas pensões, desemprego sem proteção social, doença sem protecção so-cial, falta de equipamentos, falta de protecção social em outros domínios).

Por outro lado, e para aumentar ainda mais as dificuldades, a maioria das solidariedades que no passado eram desempenhadas pela família, ou pelo grupo doméstico, que se caracterizavam pelos seus particularismos, por sentimentos de obrigação e por relações face a face, fragilizaram-se, sendo algumas dessas obrigações transferidas para outras instituições sociais com lógicas de fun-cionamento impessoais e universalistas. Esta transferência de obrigações, por seu turno, obriga o utente a conhecer em profundidade os seus mecanismos de actuação sob pena de não poder reivin-dicar e usufruir dos benefícios a que cada tem direito. Além disso, há canais de comunicação e de acesso limitado, e cuja burocracia por vezes afasta e desmotiva grande parte dos potenciais utentes por se sentirem totalmente inadaptados ao seu modo de funcionamento. Para estes, os chamados "des-socializados", dificilmente se consegue evitar, a todo o momento, os riscos da marginalização onde se incluem o desemprego durável, a probreza, a perda de laços sociais, a perda de identidade e as suas terríveis consequências.


2.3. O sistema familiar como veículo de exclusão e de pobreza

Os ritmos de desenvolvimento das sociedades, para além dos condicionalismos económicos, variam consoante os sistemas político-ideológicos a que estiveram submetidas e à duração temporal desses mesmos sistemas sofrendo, por isso, os seus efeitos. A política do Estado Novo baseada no exclusivismo dos três pilares Deus, Pátria e Família, fechou-se por muito tempo às influências da mod-ernidade, facto que marcou profundamente os valores e o funcionamento da sociedade portuguesa não se apetrechando devidamente para enfrentar de forma pacífica as mudanças que se sucederam, e nomeadamente, minimizar o fenómeno da exclusão. Conforme já referimos e como sublinha Robert Castel, a exclusão não é um fenómeno que se define apenas pela não integração no trabalho; ela possui outra característica que consiste na não inserção na sociabilidade sócio-familiar verificando-se uma dissolução do elo social, ou seja, de desvínculo ("desfiliação"). Para Castel a exclusão resulta de um duplo processo, ou seja, da precarização de emprego e da fragilização do elo social.
É importante reter que o processo de exclusão não resulta unicamente como consequência das transformações do sistema produtivo e das políticas de emprego, mas também, e em grande medida das transformações que se registaram na estrutura familiar e das práticas relacionais, como por exemplo, diminuição da nupcialidade, aumento do número de famílias em situação de união de facto, aumento do divórcio, aumento das famílias monoparentais e de lares de um único individuo, geral-mente idoso. Esta situação cresceu rapidamente na sociedade portuguesa, particularmente nos anos noventa, manifestando-se como uma situação repentina e totalmente nova, representando uma verdadeira clivagem em relação ao passado recente.
A herança cultural da sociedade portuguesa, as características dos seus sistemas familiares e as formas de socialização primária que estes proporcionavam eram de tal modo conservadoras que muitos deles não deram resposta eficaz às necessidades de diferenciação que um processo de mudança e de complexificação exige. Sendo deixadas ao livre arbítrio, só as mais sólidas, as melhor informadas e mais flexíveis conseguiram ser bem sucedidas nesta transição.
Neste contexto as famílias constituem, de facto, um subsistema muito particular do sistema social total. Cada uma procura estabelecer estratégias de sobrevivência criando uma estrutura única de relações entre os sexos, entre as gerações e as novas estruturas sociais.
Do ponto de vista da análise sistémica é importante reconhecermos que houve grandes transformações aumentando substancialmente as variedades de sistemas de tipo familiar que simulam mas não representam exactamente as relações familiares numa base co-residencial. Por exemplo, os amantes (heterosexuais ou homosexuais) e os adultos e as crianças que vivem juntos como se entre si existissem relações de parentesco constituem sistemas de tipo familiar, mas não são famílias. Os lares que incluem tanto as relações de parentesco como as relações de tipo familiar são chamados de sis-temas domésticos mistos, mas não são famílias. Os parentes de sangue, por adopção ou por aliança (casamento) que não partilham uma residência comum constituem um grupo de parentes mas não preenchem o critério que se estabelece para os sistemas familiares. A maior parte das inovações que os investigadores e teóricos do processo familiar conseguiram divulgar sobre a forma como estes sistemas operam e gerem os seus desafios podem aplicar-se igualmente aos sistemas de tipo famil-iar, aos sistemas domésticos mistos e aos grupos de parentes.
Estes modelos de comportamento estão perfeitamente classificados e identificados, o que varia de sociedade para sociedade é essencialmente a sua representatividade numérica e o que isso repre-senta em termos de dinâmica ou de estática social.
Na verdade as famílias são únicas na forma como estruturam os géneros masculino e feminino e se relacionam com as várias gerações, no tipo de comunicação interna que estabelecem entre os seus membros, nos valores que defendem, nos objectivos que formulam, na forma como utilizam e de-senvolvem os seus recursos humanos e materiais, na forma como estabelecem metas e constrangi-mentos nos percursos pessoais e familiares e ainda no tipo de interacções que estabelecem com os restantes sub-sistemas sociais. Cada família, enquanto sistema, adopta comportamentos típicos que na óptica da gestão dos recursos familiares e por simplificação de linguagem se aproximam mais das práticas de sistemas de tipo morfogénico, de tipo morfostático ou de tipo espontâneo e certa-mente, estas formas de gestão, têm consequências profundas não só para os elementos que fazem parte desses sistemas, para o seu percurso pessoal, individualmente considerado, mas também do seu conjunto enquanto grupo e instituição social e em termos de dinâmica social.
Estes três tipos de sistemas familiares diferem muito entre si nas formas de interacção com as es-truturas socias, nas formas de planeamento da vida, nas capacidades de resposta na resolução dos problemas que os afectam e na tomada de decisão. Cada um gere a sua existência à sua maneira, consoante a sua estrutura, os seus recursos humanos e materiais e estabelece as suas próprias redes de interacções internas e externas com os restantes sub-sistemas sociais. Umas são mais abertas aos desafios e às mudanças manifestando maior capacidade de diferenciação, e consequentemente tor-nam-se mais flexíveis no julgamento e na adesão às inovações sociais acompanhando mais criteriosamente a dialética da modernidade.
Estes tipos de famílias ou de sistemas familiares, por terem adquirido uma maior autonomia cul-tural e funcional em relação ao sistema social total, tendem a afastar-se dos modelos e das estrutu-ras mais tradicionais adquirindo uma maior capacidade de diferenciação e de integração. Estas criam novos ritmos de vida, uma nova moral, novos elementos socializantes e orientam os seus pla-nos e as suas acções e decisões de uma forma mais liberal, mais do ponto de vista do pequeno grupo, ou mesmo do indivíduo, assumindo, por isso, características próprias que os permite classificar como sistemas familiares de tipo morfogénico. Estes vivem atentamente o presente, dominam as fontes de informação, reunem, à partida, condições mais favoráveis para planear a vida a curto, médio e longo prazo, detêm e/ou apreciam o conhecimento científico, usufruem dos seus benefícios, acreditam e têm fé nos milagres da tecnologia, ou seja, acreditam, sobretudo, na vontade do homem fazendo dela a medida para todas as coisas. Este seria o tipo de sistema familiar mais desejável para uma sociedade dinâmica, uma vez que se trata de cidadãos mais empreendedores e à partida mais predispostos para a auto-resolução dos seus problemas e para contornar situações problemáticas. Todavia, este modelo não corresponde à maioria da nossa população.
A maior dificuldade nas formas de socialização, e principalmente na socialização secundária, consiste em motivar e acompanhar as famílias mais fechadas, e por isso, cultural e funcionalmente mais dependentes, a modificar os modelos "tradicionais" de gestão da vida e levá-las a enfrentar novos desafios. Por norma estas famílias caracterizam-se por serem menos autónomas, terem menos vontade ou capacidade de diferenciação, por oferecerem mais resistencias aos desafios e às mu-danças sociais manifestando tendências essencialmente do tipo morfostático. Estas famílias receiam a modernidade e desconfiam do aconselhamento exterior, procurando defender-se a todo o custo da penetração dos efeitos da transformação social na sua forma de vida. Consequentemente tendem a isolar-se, procurando especializar-se internamente e a segregarem as suas funções à custa do reforço da solidariedade interna, mesmo que insuficiente e socialmente mutilante. Neste contexto, a vontade e os objectivos individuais têm pouca expressão e/ou submetem-se à vontade do grupo, estabelecendo-se o mínimo de interacções fora do sub-sistema familiar para resistir à penetração dos modelos culturais emergentes. Trata-se de um modelo bastante frequente na sociedade portuguesa não sendo exclusivo dos meios rurais. Grande parte destas famílias formulam objectivos rígidos, por vezes difíceis de seguir e de concretizar e que exigem o sacrifício de todos. Por norma, a re-ligião, a autoridade e os valores morais tradicionais são as máximas a respeitar e a preservar domi-nando as suas vidas. Vivem preocupadas e insatisfeitas com o presente, receiam e têm muitas in-certezas quanto ao futuro por sentirem que não estão culturalmente apetrechadas para competir com as novas regras da sociedade.
Esta é por excelência uma população em risco de exclusão caso não se faça um esforço na actualização das suas competências para responder eficazmente às novas procuras societais.
Há também as famílias inexperientes, precariamente constituídas, vivendo algo anarquicamente utilizando uma prática de gestão do dia a dia que podemos classificar de tipo espontâneo. Estas enfrentam, por maioria de razão, situações muito mais adversas devido às suas limitações em recursos humanos e/ou materiais "gerindo" autodidaticamente a sua condição de acordo com as suas fracas potencialidades. Apesar da sua vulnerabilidade, proveniente em grande medida de uma socialização deficiente e desqualificada e de um passado já caracterizado pela pobreza e por baixo capital cul-tural, lutam pela sobrevivência numa sociedade cada vez mais exigente procurando dia a dia con-tornar as adversidades da vida. Estas famílias, que na realidade quase já não o são do ponto de vista funcional e estrutural, sofrem sistematicamente de marginalização e de exclusão social caso não consigam encontrar um modo de vida minimamente estável e satisfatório. Estas condições são totalmente desfavoráveis à formulação de horizontes e de quaisquer objectivos de vida. A incerteza e a insegurança dominam o seu quotidiano. O futuro não existe ou não passa de uma vertigem, só há o presente. Não é difícil perceber o que leva à desorganização destas famílias nem à sua revolta contra a sociedade por esta não lhes proporcionar as condições mínimas para uma vida digna. Os seus membros deixam de confiar no grupo procurando, cada um por si, superar a sua angústia e o seu ressentimento. Os que se vêem sem força e sem talento para participar na comunidade, cansa-dos da humilhação, perdem a pouco e pouco a auto-confiança, a auto-estima, os laços sociais, a identidade, a esperança e a fé, tornando-se presa fácil no mundo da marginalidade e da delinquência.
Como derradeira solução resta o apelo ao divino e aí as várias igrejas estão atentas encontrando aqui um meio de acção inesgotável. Aí proliferam e competem entre si na prestação da soli-dariedade, na reabilitação da fé e nas propostas de salvamento para as gerações desencantadas, mas não eliminam as situações de exclusão.
Estes exemplos são praticamente comuns a qualquer sociedade do mundo ocidental o que prova bem como é imprescindível insistir em formas mais diversificadas e solidárias de socialização dos indivíduos permitindo-lhes a aquisição de novas competências, adaptadas ao funcionamento das novas estruturas sociais, que possam contribuir para evitar os riscos de exclusão social.
Por outro lado, as componentes do meio-ambiente físico e social a que se pertence têm grandes responsabilidades no processo de exclusão, uma vez que condicionam quase por completo a sociali-zação primária e secundária dos indivíduos e as actividades dos grupos. A fraguementação e a dif-erenciação da sociedade é cada vez maior. As diferenças começam à nascença, com o capital cul-tural e social da famíla de origem, com a condicionante geográfica da região, do local e do bairro onde se reside, passa para a escola que se frequenta, pelos grupos de amigos e pelo tipo de contactos e de redes sociais que se estabelecem, pelo sucesso e pelo insucesso escolar, pela forma como se entre na vida activa e prolonga-se pela vida fora condicionada pelos sucessos e insucessos das fases anteriores. A diferença de oportunidades nas experiências socializantes afecta transversal e longitu-dinalmente a vida do indivíduo. É sem dúvida um processo biográfico e estrutural. Sabemos que as famílias diferem no seu background cultural, na forma como se constituem, na sua composição e estrutura, nas formas de coesão e de solidariedade, nas suas rotinas diárias e não diárias, nas ati-tudes, nos comportamentos, nos níveis de educação, nos níveis de rendimentos, diferem nos valores, nos objectivos e nos modos de vida, na forma como ocupam e se distribuem no espaço, no respeito pelo meio-ambiente e no seu usufruto, diferem na interiorização e exteriorização da alegria, da felicidade, da tristeza e do sofrimento, na forma como decidem e exercem o poder em relação aos seus membros, nas formas como se adaptam ou resistem às mudanças e aos novos desafios e diferem na capacidade e rapidez de acção na resolução dos seus problemas.
Em suma a análise da diversidade e da complexidade das situações familiares e o esforço que nos conduz à sua compreensão remete-nos forçosamente para uma abordagem sistémica de cariz estrutural-funcional, na óptica da teoria dos sistemas. Este esforço passa em primeiro lugar pela com-preensão do próprio processo familiar, do seu desenvolvimento enquanto sub-sistema da sociedade mais vasta, dos tipos de interacções que estabelece com os restantes sub-sistemas sociais, se se trata de um sub-sistema aberto, semi-aberto ou mais fechado; passa pela análise da autonomia funcional dos sub-sistemas familiares em relação à sociedade mais vasta e pela análise da capacidade de diferenciação desses mesmos sub-sistemas. Além disso, e sem esquecer o todo que é o sistema social total, importa compreender as tendências de desenvolvimento interno dos sub-sistemas fa-miliares, o que neles se manifesta de estático e de dinâmico em relação à sua estrutura normativa e comportamental no que respeita às funções e papéis familiares, aos papéis dos sexos, às formas de comunicação interna e externa à família e aos tipos de relações entre os géneros masculino e feminino intra e intergeracionais, às formas de comunicação e de interacção do casal ou do grupo doméstico, às diferenças geracionais no desenvolvimento das diversas fases do ciclo de vida famil-iar. Estes exemplos só por si, evidenciam a complexidade da análise, da compreensão e da explica-ção das características dos sistemas familiares e da sua interdependência do meio-ambiente e do nível de desenvolvimento global da sociedade.
A exclusão surge quando há um grande desencontro qualitativo entre os desafios/estímulos que a sociedade propõe e exige aos seus cidadãos e o "feedback" dos indivíduos e das famílias. Algo falha neste processo de comunicação. Sempre que tal acontece urge investir na melhoria dessas relações de reciprocidade, ou seja, nas diferentes formas ou níveis de interacções existentes entre os indivíduos e as famílias e entre estas e as restantes estruturas sociais. A socialização primária e secundária é, sobretudo, uma situação de compromisso, não só, entre o sistema familiar e o in-divíduo, mas também, entre estes e todos os sub-sistemas do sistema social total.

3. Conclusão

A velocidade da mudança e da evolução da sociedade portuguesa acentou as diferenças individuais e grupais, quer em relação às aspirações e estilos de vida, quer em relação às capacidades de resposta na resolução de problemas. Coexistem de uma forma muito mais evidente indivíduos, famílias e outros grupos com características muito diversas, desde os mais tradicionais, aos mais modernas ou pós-modernos, e, em função disso, acentuam-se as diferenças entre si na forma como socializam os seus membros, e consequentemente influenciam a capacidade dos indivíduos nas respostas aos desafios ou estímulos que lhes proporcionam e nas exigências que lhes fazem, quer individualmente considerados, quer enquanto membros dos vários grupos sociais.
Na sociedade portuguesa coexistem diversos modelos, o que constitui a prova mais evidente do processo de modernização e, consequentemente, de complexificação da nossa sociedade. Paralelamente são já bem visíveis as diferentes formas de individualização e de socialização. Para muitos, especialmente para os mais fracos, e também para aqueles que fazem do modo de vida o apelo constante aos valores da solidariedade humana e da tolerância, esta nova realidade confunde-os e assusta-os porque desconhecem e receiam as suas consequências.
Em suma, as sociedades e as famílias de hoje apresentam modelos mistos de individualização e de socialização, uma vez que a mudança e o desenvolvimento pessoal e familiar não se processam uni-formemente nem ao mesmo rítmo em todos os meios sociais. As práticas de socialização primária e secundária são uma responsabilidade que não cabe, apenas, às famílias e aos indivíduos, elas são partilhadas pelos cidadãos, pelos grupos e pelas instituições, Em qualquer sociedade é sempre possível identificar vários padrões ou modelos de interacção sistémica correspondentes à diversidade de tipos de sub-sistemas familiares que compõem o sistema social total. Sabendo-se que os resultados da adaptação às mudanças sociais provenientes de um processo de modernização rápida não são uniformes, é importante testar e investigar soluções, igualmente "modernas" que eventualmente contribuam para atenuar as desigualdades, e eliminar o fenómeno da exclusão sem rejeitar a mudança. Presentemente a ideia de mudança substituiu a ideia de progresso. A mudança converteu-se na palavra mágica da modernidade, no seu valor supremo, ou seja, no grande desafio. Essa mu-dança passa também pela capacidade de mudar as estruturas encontrando outras, mais solidárias, embora num sentido moderno, que invistam na re-socialização e reintegração dos actuais excluídos retirando-lhes definitivamente o estigma da irreversibilidade da sua situação. Vislumbram-se já al-gumas ideias e iniciativas positivas nesse sentido, mas, de momento, estamos numa fase muito embrionária e ainda não avaliável.
Para o bem comum urge encontrar soluções, e isso passa pela reestruturação das formas de interacção. Ninguém poderá abster-se deste esforço, quer enquanto, cidadão, agente político, quer en-quanto analísta social. Todos somos obreiros desta passagem podendo funcionar como facilitadores deste processo proporcionando, através de uma informação especializada, uma maior harmonização dos conflitos resultantes da interacção entre o indivíduo, a família, a escola e o trabalho ou pro-fissão, ou seja, com a sociedade no seu todo.
Actualmente a sociedade, a família e os indivíduos tornaram-se mais exigentes no cumprimento das obrigações, das funções e dos papéis sociais e familiares e simultaneamente, mais intolerantes para os indigentes ou pouco escrupulosos. Vivemos um momento de avaliação sistemática onde se exige de cada um de nós, mais dinamismo, mais compromisso, mais participação activa em todas as facetas da vida pessoal, familiar, profissional e social, mais eficácia e mais competência no desem-penho de todos os papéis e funções. Todavia, esta eficiência não é espontânea terá de ser adquirida pela socialização embora isso passe por uma vontade de se deixar socializar; trata-se de um acto objectivo, mas também subjectivo e perfeitamente consciente. Os que não correspondam a estas expectativas correm deliberadamente riscos que podem ir da sanção correctora do comportamento a sanções mais graves de ostracismo ou de exclusão social.

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Maria das Mercês C. de Mendonça Covas

 

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