1. Introducão
A exclusão social transformou-se, para os países
industrializados, num tema da ordem do dia nas últimas décadas
do século XX à semelhança do que acontecera com o tema do
pauperismo durante o século XIX. Quer um, quer outro, marcam, a
seu tempo, a chamada "nova questão social". Embora
estes temas encerrem algumas diferenças, nomeadamente quanto ao
seu contexto histórico, ambos apresentam uma característica
comum; exprimem uma condição de privação. Castel (1996), no
seu artigo sobre "os marginais na história" mostra-nos
claramente como os fenómenos da marginalidade não são de
geração espontânea; têm antecedentes históricos mais ou
menos longínquos não se resumindo a uma situação meramente
conjuntural. Serge Paugam, num texto sobre a ex-clusão em
França refere que o pauperismo caracterizava a entrada na
sociedade industrial antes das conquistas sociais e dos
regulamentos estatais, enquanto a exclusão traduz a crise
estrutural dos seus fundamentos, depois de várias décadas ao
longo das quais a miséria parecia ter desaparecido (Paugam,
1996:8).
Em Portugal os fenómenos da pobreza e da exclusão não seguiram
o ritmo francês. Entre nós a pobreza, embora negligenciada,
sempre existiu em larga escala. A forte emigração e o êxodo
rural são testemunhos dessa realidade. Por outro lado, a nossa
industrialização foi fraca e tardia, aparecendo já na segunda
metade do século XX, adiando, internamente, os seus efeitos.
Apesar disso, não nos libertámos da crise da
industrialização. Assistimos ao aumento do desemprego, e em
especial o de longa duração, e simultaneamente avolumam-se as
situações de marginalidade onde a pobreza e o isolamento
proliferam. Mais do nunca esta realidade tornou-se fonte de
mal-estar social, constituindo uma verdadeira preocupação para
os políticos e investigadores.
Para os sociólogos o termo exclusão é ambíguo e apresenta-se
mais como uma noção social do que como um conceito
sociológico. Na linguagem da economia, Bernard Gazier refere que
a exclusão é um termo de origem recente mas não é um conceito
da teoria económica uma vez que designa a situação e a
trajectória de grupos cujo nível e situação de vida os afasta
da participação na comunidade de um país, facto que no seu
entender ultrapassa claramente as dimensões económicas por
implicar em primeiro lugar as dimensões sociais, psicológicas e
políticas (Gazier,1996:42). Claude Dubar considera que a
primeira condição para a pesquisa científica da exclusão
consiste em considerá-la como uma construção social, ou seja,
como um produto histórico de mecanismos sociais e não como um
"estado" resultante de atributos individuais e
colectivos (Dubar,1996:111). Segundo este autor, os fenómenos
actualmente designados com o termo exclusão nem sempre
existiram como tal, uma vez que são resultantes de
transformações recentes nos funcionamentos
"estru-turais" das instituições chaves da vida
económica e social, instituições essas que contribuem para
fornecer aos indivíduos recursos financeiros e um status social
(Dubar,1996:111). Para entender e explicar a exclusão é
indispensável analisar as evoluções ao nível das políticas
de emprego, das regras de funcionamento do mercado de trabalho,
das transformações familiares, das políticas urbanas e, em
especial, dos bairros periféricos. Instituições como a
empresa, a escola, a família e o meio ambiente físico e social
produzem exclusão. Admitindo que não se trata de uma noção
inteiramente nova, acontece que ela nunca foi tão utilizada
como nos nossos dias. Tornou-se intolerável, incómoda e, pior
que isso, a população em risco não pára de aumentar. Este
facto constitui uma prova evidente da sua actualidade
transformando-se numa questão quase banal nos comentários
jornalísticos, nos programas políticos e nas acções sociais
sobre o terreno. Por outro lado, a pobreza que geralmente aparece
como fenómeno associado à exclusão apresenta, porém, outras
característi-cas; tem uma existência muito mais longa e apesar
de ter afectado e de continuar a afectar vastas camadas da
população, foi, por muito tempo, uma questão quase esquecida e
adiada. Apesar de diferentes nas suas origens é frequente ambos
os conceitos aparecerem associados apresentando, por vezes,
alguma complementaridade e um cenário comum caracterizado pela
precaridade de emprego, pela ausência de qualificação, pelo
desemprego de longa duração, pela perda de relações sociais
e, sobretudo, por uma incerteza face ao futuro (Castel, 1995).
Qualquer destes fenómenos suscitam grande indignação e dão
origem a pesquisas e ao aparecimento de programas de
intervenção, uma vez que a sua visibilidade e consequências
são hoje vividas de uma forma mais dramática, e estigmatizante
do que em épocas passadas. No entanto, a situação tem-se
agravado ao mesmo tempo que se fala cada vez mais dos direitos
fundamentais do cidadão e do processo de desenvolvimento das
sociedades, parecendo, por isso, evoluir num sentido contrário
ao dos princípios democráticos. A mudança social e o processo
acelerado de desenvolvimento e de reestruturação
sócio-económica, a crise económica e a profunda
transformação cultural, social e tecnológica avolumaram
drasticamente os fenómenos da exclusão e da pobreza não se
encontrando, de imediato, meios de combate suficientemente
eficazes. Paralelamente verifica-se uma certa inca-pacidade de se
criar medidas eficientes e continuadas para enfrentar
satisfatoriamente a resolução destes problemas.
Em regra, os pobres e os mais desfavorecidos são as principais
vítimas da exclusão, todavia, nem todos os excluídos são
pobres. Na maioria dos casos a exclusão emerge de condições de
pobreza familiar endémica ou de novas formas de empobrecimento
com que os cidadãos inesperadamente se confrontam, como
consequência dos efeitos da mudança social, de degradação
moral ou de "dessocialização". É essencialmente em
torno destas condições que iremos desenvolver o tema desta
co-municação.
2. A especificidade da pobreza e da exclusão em Portugal
2.1. A probreza enquanto fenómeno constante
A pobreza é um fenómeno que se mantém fortemente enraizado no
tecido social português e era tão generalizada em algumas zonas
que se confundia com uma situação "normal". Enquanto
se man-teve como fenómeno generalizado a pobreza não contituía
factor de exclusão nem esta era ainda uma construção social na
sociedade portuguesa. Talvez por isso, fosse mais esquecida e
tolerada. Este facto foi uma consequência directa do
desenvolvimento assimétrico do nosso país que agravou ainda
mais as debilidades da sua estrutura produtiva, debilidades que
actualmente se mantêm. Mediante tais condicionalismos, a
pobreza manteve-se como um problema de ordem estrutural e nunca
como um problema "residual". Como agravante, a economia
portuguesa não reunia condições para pôr em prática o
projecto de sociedade que se seguiu à 2ª Guerra Mundial que
assentava no equilíbrio entre o crescimento económico e a
repartição da riqueza, princípio que daria lugar à so-ciedade
de "bem estar" onde o Estado Providência garantia a
protecção social mínima aos in-divíduos e famílias, que por
qualquer circunstância se encontravam excluídos do processo de
repar-tição da riqueza. Perante esta desprotecção a pobreza
manteve-se muito elevada até aos anos oitenta.
Estudos referentes ao período entre 1980 e 1990 revelaram que a
pobreza tinha diminuido em Por-tugal. Todavia, numa comparação
internacional patrocinada pela OCDE, Portugal figurava como um
dos países onde permaneciam as maiores desigualdade na
distribuição do rendimento e do consumo. Este situação é
resultante do modelo dualista e desfasado de desenvolvimento do
nosso território sendo apontado como o principal responsável
pelas profundas assimetrias regionais cujos danos económicos e
demográficos se mantêm irreversíveis; não se conseguiu até
hoje atenuar a con-centração demográfica nas grandes áreas
metropolitanas onde se criaram alguns polos de desenvol-vimento e
de concentração de riqueza, permitindo que em seu redor
proliferassem, também, vastas manchas de pobreza. O
despovoamento e a estagnação do interior rural prossegue e
enquanto esta situação se mantiver os portugueses vão
continuar a pagar um "preço" bastante elevado pela
opção política da litoralização do país. Por outro lado a
manutenção de uma política de desenvolvimento económico onde
ainda predomina uma agricultura de tipo tradicional e pouco
produtiva aliada a um tecido empresarial composto essencialmente
de pequenas e médias empresas de sectores, igualmente
tradicionais, têm contribuído para que vastas camadas do nosso
tecido social continuem excluídas do processo de repartição da
riqueza, e, consequentemente, impedidas de exercer a capacidade
de escolha no que respeita ao consumo de bens e serviços.
Por outro lado, o perfil de pobreza exige uma redefinição
sistemática uma vez que assume contornos e formas de
visibilidade que em dado momento se tornam intoleráveis para a
população de um país que se diz livre e democrático e que
reconhece como direito fundamental do cidadão o acesso a uma
vida digna. Apesar das desigualdades se terem atenuado durante os
anos oitenta continuamos no final da década de noventa com
níveis de incidência de pobreza muito elevados e com uma
per-centagem significativa da população com padrões de vida
abaixo do limiar de dignidade devido à sua incapacidade
económica.
Para atenuar as desigualdades e a exclusão partiu-se
recentemente para a experiência do rendimento mínimo garantido,
embora se saiba que esta medida, só por si, sem políticas
paralelas e sem um acompanhamento fortemente socializante serão
insuficientes para combater as situações de marginalidade
correndo o risco de não cumprir satisfatoriamente o objectivo de
reinserção social dos seus beneficiários. No caso português,
com o rendimento mínimo garantido pretende-se agora criar um
novo direito que se materializa num contrato com o Estado, mas
que terá forçosamente de conter uma forte componente
pedagógica de adaptação aos novos condicionalismos sociais,
uma vez que estes nada têm de comum com a sociedade portuguesa
que herdámos dum passado muito recente. Portugal é hoje um
país nitidamente caracterizado por uma modernidade tardia. A
nossa sociedade diferenciou-se rapidamente e aconteceu de tal
modo que as desigualdades tornaram-se muito mais visíveis e
incómodas.
Recorde-se que há trinta anos Portugal ainda não era um país
moderno, grande parte da sua popu-lação era analfabeta e
extremamente modesta, de horizontes limitados, onde a ambição
era privilé-gio de uma minoria, facto que era perfeitamente
compatível com o sistema de valores veiculados pela ideologia do
Estado Novo.
Os sistemas familiares da época eram estáticos, sustentados por
um sistema de valores tradicional-istas e autoritários,
revelando, por isso, fraca capacidade de diferenciação.
Enquanto o país se manteve estático, com fraca mobilidade, onde
tudo era previsível e pré-determinado, os comporta-mentos
individuais e familiares apresentavam uma relativa homogeneidade
e um grande imobilismo ao longo das gerações. A rigidez dos
valores e dos comportamentos limitou as capacidades de
ino-vação e de incentivo das competências familiares e
pessoais na gestão dos ciclos de vida. Neste contexto, o empenho
na socialização primária e secundária dos indivíduos era
essencialmente marcado pelas condições de origem, pela
manutenção dos laços e da identidade cultural, ou seja pela
continuidade dos traços culturais, facto que, na grande maioria
das famílias se limitava à repetição e continuação das
rotinas que estavam praticamente cristalizadas.
Actualmente, tudo mudou na sociedade portuguesa. Com as
conquistas democráticas e com as novas dinâmicas adquiridas,
nomeadamente as resultantes da adesão à União Europeia, que
vieram acrescer os nossos compromissos políticos, económicos e
sociais, entrámos num processo de rápida complexificação da
sociedade e da vida dos cidadãos donde resultam,
inevitavelmente, alguns des-fasamentos que se traduzem de uma
forma imediata, e que afecta em doses variáveis todos os grupos
de idade, provocando um aumento dos riscos, das incertezas e da
insegurança, quer em relação ao presente, quer em relação
futuro. Os horizontes e as oportunidades alargaram-se mas os
ris-cos também uma vez que as instituições e as estruturas
sociais mudaram as regras de funciona-mento.
O aumento progressivo do desemprego em todos os ramos de
actividade, e principalmente do de-semprego de longa duração,
veio aumentar o contingente de indivíduos dificilmente
recicláveis e reintegraveis noutra actividade, não só pela
idade, como pela sua inaptidão cognitiva e/ou psico-motora. Pela
primeira vez, uma grande parte dos indivíduos e das famílias
portuguesas são confrontadas seriamente com as suas
limitações face às exigências de uma sociedade que se
transfor-mou rapidamente e que impôs novas regras no mercado de
trabalho. Grande parte delas viram-se obrigadas a tornarem-se
autosuficientes e de iniciarem uma actividade por conta própria
por não conseguirem um lugar no mercado de trabalho.
Este desafio põe-se igualmente a diplomados e a não diplomados,
embora as situações de partida sejam muito distintas. A
exclusão é um processo que atinge mais facilmente determinadas
catego-rias de pessoas ao longo da sua existência. As actuais
condições de vida dificilmente permitem criar cenários
estáveis e definitivos. A capacidade de previsão passou a ser
afectada por factores exteriores ao indivíduo e à sua
família, e mesmo exteriores à sua própria sociedade, factores
esses que aumentam os riscos de percurso na tragetória de vida e
que escapam muito mais facilmente ao nosso controlo. A noção
pacífica, natural e meramente transitória que os portugueses
tinham das diferentes fases do seu ciclo de vida fragilizou-se
uma vez que as certezas são cada vez mais efémeras e as crises
ou problemas que daí resultam são mais difícies de
ultrapassar. Neste contexto, para os mais frágilizados é cada
vez mais problemático estabelecer metas e concretizá-las. A
forma mais prudente de planear objectivos a médio e longo prazo
é sem dúvida através de um planeamento do tipo contingente
onde se podem idealizar várias alternativas possíveis e
enveredar por uma que, à luz dos condicionalismos de cada
momento, e baseada numa informação rigorosa, oferecer as
melhores condições de êxito. Mediante tais dificuldades é
fácil perceber que apenas quem domina uma informação
extremamente exigente e profissionalizada, e que além disso muda
a uma velocidade vertiginosa, consegue contornar e entender os
mecanismos que comandam o leque de oportunidades possíveis de
que cada um dispõe para viver com alguma segurança em todas as
fases do seu ciclo de vida e obviar os condicionalismos
particulares inerentes à sua situação individual, familiar ou
profissional.
2.2. Mecanismos estruturais produtores de exclusão
Para os investigadores da exclusão o sistema produtivo, na sua
génese e em toda a sua extensão, funciona como o principal
mecanismo, mas não o único, que gerou esta forma recente de
marginali-zação social. O sintoma mais profundo desta realidade
revelou-se na subida de um novo tipo de desemprego que segundo
Wuhl (1992) é por vezes designado pelo termo de "desemprego
de exclusão" e que afecta, sobretudo, indivíduos com mais
de quarenta anos, privados de emprego de uma forma durável; são
os chamados "desempregados de longa duração"(Dubar,
1996:112). Paralelamente a estes acontecimentos assite-se a uma
verdadeira mudança do sistema produtivo que passa a utilizar
novos formas de gestão do emprego na grande maioria das
empresas, e também do Estado. Segundo (Clerc,1992) esta
constatação levou muitos autores a insistirem na necessidade de
se estudar as raízes deste novo processo de exclusão nas
evoluções registadas no funcionamento do mercado de trabalho, e
em particular, nos mecanismos de contratação. Recentemente a
tese de Dubernet (1995), baseada em estudos de caso sobre a
contratação de pessoas em empresas privadas francesas,
confirmou o funcionamento da discriminação em relação aos
que não correspondiam aos critérios ditos de
"competência" da nova norma de emprego que se
caracteriza, essencialmente, pelas seguintes características:
autonomia, iniciativa, responsabilidade (Dubar, 1996:112). Além
disso, o mesmo autor evidenciou que a posse de um diploma escolar
funcionava, na maioria dos casos, como filtro, mas era sobretudo
a capacidade de antecipar as expectativas do empregador e de
manifestar con-formidade com ele que se tornava decisiva.
Partindo do princípio de que esta tendência tende a
generalizar-se nas formas de contratação nas sociedades ditas
modernas, facilmente se deduz que a capacidade de emprego está
socialmente condi-cionada pelas tragetórias anteriores dos
indivíduos e pela sua rede de relações. Aqueles que não
beneficiaram, logo de início e continuamente, de uma
socialização qualificada e que não tenham o suporte de uma
rede de relações sociais que lhe ofereçam uma oportunidade e
que façam valer as suas potenciais capacidades correm sérios
riscos de serem eliminados.
Ao longo da última década, na sociedade portuguesa, e à
semelhança do que se passa nos restantes países europeus,
têm-se verificado as mesmas características: aumento da
selectividade na contratação, aumento dos empregos
qualificados de "precários" (tratando-se de contratos
de duração limi-tada, contratos de interinidade, de empregos
"ajudados" como os trabalhos de utilidade colectiva -
TUC - e contratos de emprego-solidariedade -CES), aumento do
número de licenciamentos colectivos e de saídas da vida activa
em situação de pré-reforma. Estas evoluções têm sido as
principais responsáveis pelo aumento do desemprego de longa
duração (mais de um ano) e que afecta particu-larmente os
trabalhadores com mais idade, os jovens não diplomados e os
assalaridos com "baixos níveis de qualificação".
Com a adesão à União Europeia, Portugal assumiu novos
compromissos que tem procurado con-cretizar. Presentemente
vivemos uma época em que as transformações estruturais da
sociedade portuguesa se sucedem a um ritmo acelerado e com
tendência a intensificar-se. Este processo é inevitável tendo
como finalidade a modernização do sistema produtivo, processo
esse, que passa pela introdução de novas tecnologias e pela
reestruturação dos vários sectores de actividade. A
consequência mais imediata foi o aumento do desemprego em
virtude da supressão de muitos postos de trabalho e do
encerramento de muitas empresas. O actual mercado de trabalho é
muito mais exi-gente em mão-de-obra qualificada apostando
essencialmente na racionalização da actividade produ-tiva e na
automatização. Isto significa que determinadas categorias
sócio-profissionais correm risco imediato de se tornarem
obsuletas, enquanto outras, que anteriormente apresentavam
níveis razoáveis de integração e cujo perfil
sócio-económico e cultural se aproximavam dos valores médios
do país, tendem a tornar-se cada vez mais vulneráveis. Este
facto é responsável pelo agravamento do fenómeno da exclusão
social.
Como agravante deste cenário assistimos progressivamente ao
reforço da vulnerabilidade dos "po-bres tradicionais"
cuja integração é cada vez mais problemática. Além disso,
este fenómeno acon-tece em simultâneo com mudanças
demográficas e sociais não menos importantes, e que criaram um
contexto muito mais adverso à reintegração dos grupos
vulneráveis e dos excluídos. Referimo-nos, por exemplo, à
alteração das estruturas familiares e consequente
enfraquecimento das solidariedades; ao envelhecimento da
população; à crise financeira do sistema de segurança social
para a qual contribuiram vários factores, entre eles, os
demográficos e sociais, a crise sócio-económica e a
consolidação do mercado de trabalho dual resultando daí uma
dimimuição das receitas.
Presentemente a nossa situação é muito mais grave uma vez que
herdámos os mecanismos de ex-clusão tradicionalmente associados
à geração, mecanismos esses que eram responsáveis pela
per-sistência e pela reprodução da pobreza, e, além disso,
somos confrontados com o aparecimento de novos mecanismos de
exclusão e de novas vulnerabilidades sociais. Segundo estudos de
Manuela Silva (1990), o crescimento da economia portuguesa nos
últimos anos, nomeadamente entre 1986-89 caracterizou-se pelo
agravamento das desigualdades na repartição do rendimento. Para
exempli-ficar Manuela Silva (1990) refere-se ao aparecimento de
novos pobres e de novos ricos que têm acompanhado o processo de
transformação das estruturas sócio-económicas do país como
sintomas bastante evidentes de que a polarização social se
acentuou persistindo a tendência para se agravar. Por outro lado
verificou que durante esse período manteve-se uma grande
disparidade salarial entre Ramos de Actividade constatando
"o alargamento dos desvios dos salários entre os níveis de
quali-ficação mais elevados e os mais baixos" (Silva,
1990).
Segundo Bruto da Costa (1993), em 1989 Portugal contava com dois
milhões de pobres, consider-ando nesta categoria todos os
indivíduos cujas despesas eram insuficientes para cobrir as
necessida-des básicas. Em termos de famílias, cerca de 10%
delas tinham um nível de despesa que não chegava para assegurar
uma alimentação saudável. Presentemente a situação não
parece ter melho-rado.
Segundo o Observatório Europeu sobre as Políticas de Combate à
Exclusão Social considera-se que «que os indivíduos estão
numa situação de 'exclusão social' quando:
a) sofrem de desvantagem generalizada em termos de educação,
formação profissional, emprego, habitação, recursos
financeiros, etc.;
b) as suas possibilidades de acesso às instituições sociais
que asseguram essas oportunidades de vida são substancialmente
menores do que as que têm o resto da população;
c) tais desvantagens e reduzido acesso persistem ao longo do
tempo» (Room, 1990, cit. por D. Robbins, in Marginalization and
social exclusion, 1990).
No segundo relatório português do Observatório Europeu sobre
as Políticas de Combate à Ex-clusão Social, Pereirinha (1992)
refere que o «conceito de exclusão social corresponde à
não-realização de direitos sociais básicos formalmente
garantidos aos cidadãos pela lei-fundamental»
Se analisarmos estas noções de exclusão social verificamos que
ambas referem a existência de uma série de mecanismos
interdependentes e realçam o carácter multidimensional e
cumulativo dos proc-essos de exclusão. Além disso denunciam
claramente a negação do princípio da igualdade de
oportunidades embora este seja um dos fundamentos das sociedades
democráticas.
Os principais mecanismos de empobrecimento situam-se em domínios
que estão directa ou indirec-tamente associados ao rendimento
das famílias. Estes adquirem especial importância numa
econo-mia de mercado como a nossa e mais ainda no meio urbano
onde o acesso aos bens e serviços que se destinam à
satisfação das necessidades básicas depende exclusivamente do
poder aquisitivo das famílias. Entre esses mecanismos de
empobrecimento e pela sua influência na produção e
perpec-tuação de situações de exclusão social salientamos
alguns aspectos referentes ao mercado de trabalho, ao sistema
educativo, à segurança social, à política de habitação, e
ao sistema de saúde.
Quanto ao mercado de trabalho, no que se refere à população
activa, estão identificadas quatro situações-tipo que geram
empobrecimento:
_ os trabalhadores com vínculos precários de trabalho ou sem
qualquer vínculo;
_ os trabalhadores por conta própria que exercem a sua
actividade através de modalidades de trabalho clandestino;
_ os trabalhadores com baixas qualificações profissionais e
inseridos em ramos de actividade onde o nível de salários é
baixo;
_ os desempregados em geral e, os que enquanto trabalharam
tiveram um tipo de inserção marginal que os exclui das
prestações sociais.
Estas situações correspondem a formas de vida bastante
instáveis conduzindo facilmente a uma forte incidência de
comportamentos desviantes como a toxicodependência, a
prostituição e a delinquência. Os jovens, por constituirem o
principal alvo dos apelos da sociedade de consumo são os mais
atingidos, caindo facilmente em comportamentos marginais quando
não conseguem encontrar um trabalho estável e bem remunerado.
Estes comportamentos são, simultaneamente, uma conse-quência e
um efeito perverso de um processo de marginalização que se
inicia bastante cedo com o abandono precoce (exclusão) do
sistema educativo e que mais tarde continua a produzir os seus
efeitos com a exclusão do mercado de trabalho formal.
No que se refere ao sistema educativo persistem determinados
problemas que não foram superados apesar dos esforços do
Ministério da Educação na promoção do sucesso escolar. As
tentativas ensaiadas demonstram que a escola tem-se revelado
pouco eficaz na superação dos handicaps culturais e incapaz de
interessar as crianças e os jovens oriundos dos meios mais
desfavorecidos. Estes meios caracterizam-se pela reprodução
intergeracional de um baixo «capital cultural» sendo
extre-mamente difícil alterar esta tendência, principalmente,
se ao insucesso escolar aliarmos as carências económicas das
suas familias, o que em nada favorece a continuação dos
estudos. Por outro lado, muitos pais ainda investem pouco na
escolaridade como factor de promoção social, e, como eles
próprios têm um baixo «capital cultural» não reunem
condições para apoiarem, acompanharem e estimularem os seus
filhos no prosseguimento dos estudos. Em regra, o abandono
precoce da escola está associado a problemas de subsistência e
à necessidade de aumentar o rendimento familiar. É frequente
nestes meios os pais e os próprios jovens alegarem que não
gostam de frequentar a escola, ou que não têm capacidades
inatas para aprender, verificando-se uma certa aceitação, ou
mesmo uma predisposição para o insucesso escolar. É comum
nestes meios as raparigas abandonarem o sistema de ensino para se
ocuparem do trabalho doméstico, libertando as mães para o
trabalho re-munerado. Muitos dos jovens que abandonam
precocemente a escola entram no mundo do trabalho antes da idade
mínina legal engrossando as nossas estatísticas sobre o
trabalho infantil. Se, por um lado, o ingresso precoce no mercado
de trabalho permite ao jovem começar a auferir mais cedo algum
rendimento e alguma experiência profissional, por outro lado,
como foi afastado da escola, isso implica que ele fique com
dificuldades acrescidas de ter acesso a uma formação
profissional específica, e, consequentemente, terá uma alta
probabilidade de permanecer em trabalhos não qualifi-cados,
precários e mal remunerados durante a sua vida (M. Silva, 1992).
Por outro lado estudos recentes revelam que o nível de
instrução é uma variável cada vez mais influente na
situação de pobreza dos indivíduos. As características do
sistema de ensino aliadas às novas complexidades do mercado de
trabalho representam factores determinantes na reprodução do
ciclo vicioso da pobreza e da exclusão social.
No que respeita ao sistema de segurança social a crise tem-se
agravado devido ao facto da relação entre a proporção de
activos por cada pensionista ser cada vez menor. As famílias que
sobrevivem à mercê de um representante inactivo encontram-se
numa situação extremamente vulnerável face à exclusão social
e têm uma alta probabilidade de viverem situações de pobreza.
Bruto da Costa (1993) revela-nos que em 1989, 57% das famílias
pobres eram representadas por pensionistas. Em Portugal, a
generalidade das prestações da segurança social são tão
baixas que uma família (principalmente se viver em meio urbano)
que dependa exclusivamente dessa fonte de rendimentos
dificil-mente escapará à pobreza. Esta situação agrava-se se
as trajectórias profissionais das pessoas se caracterizaram por
baixos salários e por períodos de quotização para a
segurança social reduzidos e/ou irregulares ou mesmo
inexistentes. A crise do sistema de segurança social não se
deve, apenas, às mutações sócio-demográficas, mas também,
aos efeitos das mudanças no sistema de emprego que têm
provocado uma crescente dualização e segmentação do mercado
de trabalho. Estas medidas, se por um lado, têm permitido
enfrentar a crise de acumulação e a resolução dos problemas
da economia e das empresas, por outro, têm implicado no
decréscimo das contribuições destas à segurança social, o
que contribui para a sua ruptura, uma vez que as empresas
recorrem cada vez mais a estratégias de exteriorização física
e jurídica do emprego e à utilização de trabalho clandestino.
Os mais penalizados pela ruptura do sistema são os sectores
sócio-profissionais mais vulneráveis.
Para além dos mecanismos mais gerais de exclusão que acabámos
de referir existem outros com incidência local relacionados
mais directamente com dois direitos sociais básicos: a
habitação e a saúde. A falta de condições satisfatórias
para o exercício destes direitos tem implicações ao nível da
exclusão social, uma vez que vai repercutir-se em múltiplos
aspectos das condições de vida dos in-divíduos e das
famílias, nomeadamente, na estabilidade, na rentabilidade do
trabalho, no sucesso escolar, na participação e inserção
social. As políticas de habitação não conseguem, em tempo
útil, dar uma resposta satisfatória aos mais necessitados. Esta
situação é mais evidente nos principais centros urbanos onde
encontramos vastos sectores da população a viver em autênticos
gethos sem o mínimo de infraestruturas de conforto e de
salubridade. Estas condições constituem, por si só, um
verdadeiro estigma social e um importante factor de exclusão e
de marginalização. A persistência de tais condições tem a
agravante de contribuir para que essas populações interiorizem
uma identidade negativa, o que dificulta ainda mais a sua
reinserção social.
No domínio da saúde deparamo-nos, de igual modo, com
situações de exclusão bastante graves. Embora a saúde seja um
dos direitos sociais básicos formalmente garantido pela
Constituição Por-tuguesa, os estratos sociais mais
desfavorecidos não usufruem de condições económicas mínimas
que lhes permita ter acesso aos cuidados de saúde. A situação
é mais grave nas famílias de baixos rendimentos, principalmente
nas que têm elementos mais idosos, ou que sofrem de
deficiências ou de doenças crónicas.
São muitos os problemas sociais e as vulnerabilidades que surgem
em torno das deficientes con-dições de vida das famílias que
vivem em situação de pobreza e de exclusão. Os mais comuns,
se-gundo a actualização do diagnóstico técnico que tem
acompanhado permanentemente o trabalho no terreno das equipas de
projectos de luta contra a pobreza, nomeadamente das enquadradas
no Pro-grama POBREZA III (1994) resumem-se a:
_ deficientes condições de alojamente, predominância de
habitat degradado, insalubre, sobreocupado e sem o mínimo de
conforto;
_ baixos níveis de escolaridade;
_ elevadas taxas de insucesso escolar e de abandono precoce dos
estudos, desajuste escolar;
_ falta de formação profissional;
_ elevadas taxas de desemprego, desemprego de longa duração,
desemprego sem protecção social;
_ precaridade económica (rendimentos insuficientes do trabalho
ou da segurança social para satisfazer as necessidades
básicas, endividamento, ausência de rendimentos, má gestão
dos recursos);
_ dificuldades de inserção no mercado de trabalho, emprego
precário e com maior incidência na economia informal ou
«subterrânea» (trabalho precário, insegurança no trabalho,
desajuste profis-sional);
_ forte incidência de problemas de saúde agravados pela
desprotecção social (doenças crónicas, alterações de
comportamento, dependência física, deficiências várias, não
aceitação da doença);
_ insuficiência de equipamentos sociais;
_ degradação das relações familiares (instabilidade,
negligência, maus tratos, abandono, separação, má inserção
familiar, isolamento, monoparentalidade, famílias numerosoas,
outras);
_ degradação individual (perda de auto-estima, ausência de
expectativas, resistência à mudança, de-pendência dos
serviços de assistência, desconhecimento de direitos);
_ forte incidência de condições de marginalidade
(toxidependência, prostituição, actividades marginais,
outras);
_ desprotecção social (baixas pensões, desemprego sem
proteção social, doença sem protecção so-cial, falta de
equipamentos, falta de protecção social em outros domínios).
Por outro lado, e para aumentar ainda mais as dificuldades, a
maioria das solidariedades que no passado eram desempenhadas pela
família, ou pelo grupo doméstico, que se caracterizavam pelos
seus particularismos, por sentimentos de obrigação e por
relações face a face, fragilizaram-se, sendo algumas dessas
obrigações transferidas para outras instituições sociais com
lógicas de fun-cionamento impessoais e universalistas. Esta
transferência de obrigações, por seu turno, obriga o utente a
conhecer em profundidade os seus mecanismos de actuação sob
pena de não poder reivin-dicar e usufruir dos benefícios a que
cada tem direito. Além disso, há canais de comunicação e de
acesso limitado, e cuja burocracia por vezes afasta e desmotiva
grande parte dos potenciais utentes por se sentirem totalmente
inadaptados ao seu modo de funcionamento. Para estes, os chamados
"des-socializados", dificilmente se consegue evitar, a
todo o momento, os riscos da marginalização onde se incluem o
desemprego durável, a probreza, a perda de laços sociais, a
perda de identidade e as suas terríveis consequências.
2.3. O sistema familiar como veículo de exclusão e de pobreza
Os ritmos de desenvolvimento das sociedades, para além dos
condicionalismos económicos, variam consoante os sistemas
político-ideológicos a que estiveram submetidas e à duração
temporal desses mesmos sistemas sofrendo, por isso, os seus
efeitos. A política do Estado Novo baseada no exclusivismo dos
três pilares Deus, Pátria e Família, fechou-se por muito tempo
às influências da mod-ernidade, facto que marcou profundamente
os valores e o funcionamento da sociedade portuguesa não se
apetrechando devidamente para enfrentar de forma pacífica as
mudanças que se sucederam, e nomeadamente, minimizar o fenómeno
da exclusão. Conforme já referimos e como sublinha Robert
Castel, a exclusão não é um fenómeno que se define apenas
pela não integração no trabalho; ela possui outra
característica que consiste na não inserção na sociabilidade
sócio-familiar verificando-se uma dissolução do elo social, ou
seja, de desvínculo ("desfiliação"). Para Castel a
exclusão resulta de um duplo processo, ou seja, da
precarização de emprego e da fragilização do elo social.
É importante reter que o processo de exclusão não resulta
unicamente como consequência das transformações do sistema
produtivo e das políticas de emprego, mas também, e em grande
medida das transformações que se registaram na estrutura
familiar e das práticas relacionais, como por exemplo,
diminuição da nupcialidade, aumento do número de famílias em
situação de união de facto, aumento do divórcio, aumento das
famílias monoparentais e de lares de um único individuo,
geral-mente idoso. Esta situação cresceu rapidamente na
sociedade portuguesa, particularmente nos anos noventa,
manifestando-se como uma situação repentina e totalmente nova,
representando uma verdadeira clivagem em relação ao passado
recente.
A herança cultural da sociedade portuguesa, as características
dos seus sistemas familiares e as formas de socialização
primária que estes proporcionavam eram de tal modo conservadoras
que muitos deles não deram resposta eficaz às necessidades de
diferenciação que um processo de mudança e de
complexificação exige. Sendo deixadas ao livre arbítrio, só
as mais sólidas, as melhor informadas e mais flexíveis
conseguiram ser bem sucedidas nesta transição.
Neste contexto as famílias constituem, de facto, um subsistema
muito particular do sistema social total. Cada uma procura
estabelecer estratégias de sobrevivência criando uma estrutura
única de relações entre os sexos, entre as gerações e as
novas estruturas sociais.
Do ponto de vista da análise sistémica é importante
reconhecermos que houve grandes transformações aumentando
substancialmente as variedades de sistemas de tipo familiar que
simulam mas não representam exactamente as relações familiares
numa base co-residencial. Por exemplo, os amantes (heterosexuais
ou homosexuais) e os adultos e as crianças que vivem juntos como
se entre si existissem relações de parentesco constituem
sistemas de tipo familiar, mas não são famílias. Os lares que
incluem tanto as relações de parentesco como as relações de
tipo familiar são chamados de sis-temas domésticos mistos, mas
não são famílias. Os parentes de sangue, por adopção ou por
aliança (casamento) que não partilham uma residência comum
constituem um grupo de parentes mas não preenchem o critério
que se estabelece para os sistemas familiares. A maior parte das
inovações que os investigadores e teóricos do processo
familiar conseguiram divulgar sobre a forma como estes sistemas
operam e gerem os seus desafios podem aplicar-se igualmente aos
sistemas de tipo famil-iar, aos sistemas domésticos mistos e aos
grupos de parentes.
Estes modelos de comportamento estão perfeitamente classificados
e identificados, o que varia de sociedade para sociedade é
essencialmente a sua representatividade numérica e o que isso
repre-senta em termos de dinâmica ou de estática social.
Na verdade as famílias são únicas na forma como estruturam os
géneros masculino e feminino e se relacionam com as várias
gerações, no tipo de comunicação interna que estabelecem
entre os seus membros, nos valores que defendem, nos objectivos
que formulam, na forma como utilizam e de-senvolvem os seus
recursos humanos e materiais, na forma como estabelecem metas e
constrangi-mentos nos percursos pessoais e familiares e ainda no
tipo de interacções que estabelecem com os restantes
sub-sistemas sociais. Cada família, enquanto sistema, adopta
comportamentos típicos que na óptica da gestão dos recursos
familiares e por simplificação de linguagem se aproximam mais
das práticas de sistemas de tipo morfogénico, de tipo
morfostático ou de tipo espontâneo e certa-mente, estas formas
de gestão, têm consequências profundas não só para os
elementos que fazem parte desses sistemas, para o seu percurso
pessoal, individualmente considerado, mas também do seu conjunto
enquanto grupo e instituição social e em termos de dinâmica
social.
Estes três tipos de sistemas familiares diferem muito entre si
nas formas de interacção com as es-truturas socias, nas formas
de planeamento da vida, nas capacidades de resposta na
resolução dos problemas que os afectam e na tomada de decisão.
Cada um gere a sua existência à sua maneira, consoante a sua
estrutura, os seus recursos humanos e materiais e estabelece as
suas próprias redes de interacções internas e externas com os
restantes sub-sistemas sociais. Umas são mais abertas aos
desafios e às mudanças manifestando maior capacidade de
diferenciação, e consequentemente tor-nam-se mais flexíveis no
julgamento e na adesão às inovações sociais acompanhando mais
criteriosamente a dialética da modernidade.
Estes tipos de famílias ou de sistemas familiares, por terem
adquirido uma maior autonomia cul-tural e funcional em relação
ao sistema social total, tendem a afastar-se dos modelos e das
estrutu-ras mais tradicionais adquirindo uma maior capacidade de
diferenciação e de integração. Estas criam novos ritmos de
vida, uma nova moral, novos elementos socializantes e orientam os
seus pla-nos e as suas acções e decisões de uma forma mais
liberal, mais do ponto de vista do pequeno grupo, ou mesmo do
indivíduo, assumindo, por isso, características próprias que
os permite classificar como sistemas familiares de tipo
morfogénico. Estes vivem atentamente o presente, dominam as
fontes de informação, reunem, à partida, condições mais
favoráveis para planear a vida a curto, médio e longo prazo,
detêm e/ou apreciam o conhecimento científico, usufruem dos
seus benefícios, acreditam e têm fé nos milagres da
tecnologia, ou seja, acreditam, sobretudo, na vontade do homem
fazendo dela a medida para todas as coisas. Este seria o tipo de
sistema familiar mais desejável para uma sociedade dinâmica,
uma vez que se trata de cidadãos mais empreendedores e à
partida mais predispostos para a auto-resolução dos seus
problemas e para contornar situações problemáticas. Todavia,
este modelo não corresponde à maioria da nossa população.
A maior dificuldade nas formas de socialização, e
principalmente na socialização secundária, consiste em
motivar e acompanhar as famílias mais fechadas, e por isso,
cultural e funcionalmente mais dependentes, a modificar os
modelos "tradicionais" de gestão da vida e levá-las a
enfrentar novos desafios. Por norma estas famílias
caracterizam-se por serem menos autónomas, terem menos vontade
ou capacidade de diferenciação, por oferecerem mais
resistencias aos desafios e às mu-danças sociais manifestando
tendências essencialmente do tipo morfostático. Estas famílias
receiam a modernidade e desconfiam do aconselhamento exterior,
procurando defender-se a todo o custo da penetração dos efeitos
da transformação social na sua forma de vida. Consequentemente
tendem a isolar-se, procurando especializar-se internamente e a
segregarem as suas funções à custa do reforço da
solidariedade interna, mesmo que insuficiente e socialmente
mutilante. Neste contexto, a vontade e os objectivos individuais
têm pouca expressão e/ou submetem-se à vontade do grupo,
estabelecendo-se o mínimo de interacções fora do sub-sistema
familiar para resistir à penetração dos modelos culturais
emergentes. Trata-se de um modelo bastante frequente na sociedade
portuguesa não sendo exclusivo dos meios rurais. Grande parte
destas famílias formulam objectivos rígidos, por vezes
difíceis de seguir e de concretizar e que exigem o sacrifício
de todos. Por norma, a re-ligião, a autoridade e os valores
morais tradicionais são as máximas a respeitar e a preservar
domi-nando as suas vidas. Vivem preocupadas e insatisfeitas com o
presente, receiam e têm muitas in-certezas quanto ao futuro por
sentirem que não estão culturalmente apetrechadas para competir
com as novas regras da sociedade.
Esta é por excelência uma população em risco de exclusão
caso não se faça um esforço na actualização das suas
competências para responder eficazmente às novas procuras
societais.
Há também as famílias inexperientes, precariamente
constituídas, vivendo algo anarquicamente utilizando uma
prática de gestão do dia a dia que podemos classificar de tipo
espontâneo. Estas enfrentam, por maioria de razão, situações
muito mais adversas devido às suas limitações em recursos
humanos e/ou materiais "gerindo" autodidaticamente a
sua condição de acordo com as suas fracas potencialidades.
Apesar da sua vulnerabilidade, proveniente em grande medida de
uma socialização deficiente e desqualificada e de um passado
já caracterizado pela pobreza e por baixo capital cul-tural,
lutam pela sobrevivência numa sociedade cada vez mais exigente
procurando dia a dia con-tornar as adversidades da vida. Estas
famílias, que na realidade quase já não o são do ponto de
vista funcional e estrutural, sofrem sistematicamente de
marginalização e de exclusão social caso não consigam
encontrar um modo de vida minimamente estável e satisfatório.
Estas condições são totalmente desfavoráveis à formulação
de horizontes e de quaisquer objectivos de vida. A incerteza e a
insegurança dominam o seu quotidiano. O futuro não existe ou
não passa de uma vertigem, só há o presente. Não é difícil
perceber o que leva à desorganização destas famílias nem à
sua revolta contra a sociedade por esta não lhes proporcionar as
condições mínimas para uma vida digna. Os seus membros deixam
de confiar no grupo procurando, cada um por si, superar a sua
angústia e o seu ressentimento. Os que se vêem sem força e sem
talento para participar na comunidade, cansa-dos da humilhação,
perdem a pouco e pouco a auto-confiança, a auto-estima, os
laços sociais, a identidade, a esperança e a fé, tornando-se
presa fácil no mundo da marginalidade e da delinquência.
Como derradeira solução resta o apelo ao divino e aí as
várias igrejas estão atentas encontrando aqui um meio de
acção inesgotável. Aí proliferam e competem entre si na
prestação da soli-dariedade, na reabilitação da fé e nas
propostas de salvamento para as gerações desencantadas, mas
não eliminam as situações de exclusão.
Estes exemplos são praticamente comuns a qualquer sociedade do
mundo ocidental o que prova bem como é imprescindível insistir
em formas mais diversificadas e solidárias de socialização dos
indivíduos permitindo-lhes a aquisição de novas competências,
adaptadas ao funcionamento das novas estruturas sociais, que
possam contribuir para evitar os riscos de exclusão social.
Por outro lado, as componentes do meio-ambiente físico e social
a que se pertence têm grandes responsabilidades no processo de
exclusão, uma vez que condicionam quase por completo a
sociali-zação primária e secundária dos indivíduos e as
actividades dos grupos. A fraguementação e a dif-erenciação
da sociedade é cada vez maior. As diferenças começam à
nascença, com o capital cul-tural e social da famíla de origem,
com a condicionante geográfica da região, do local e do bairro
onde se reside, passa para a escola que se frequenta, pelos
grupos de amigos e pelo tipo de contactos e de redes sociais que
se estabelecem, pelo sucesso e pelo insucesso escolar, pela forma
como se entre na vida activa e prolonga-se pela vida fora
condicionada pelos sucessos e insucessos das fases anteriores. A
diferença de oportunidades nas experiências socializantes
afecta transversal e longitu-dinalmente a vida do indivíduo. É
sem dúvida um processo biográfico e estrutural. Sabemos que as
famílias diferem no seu background cultural, na forma como se
constituem, na sua composição e estrutura, nas formas de
coesão e de solidariedade, nas suas rotinas diárias e não
diárias, nas ati-tudes, nos comportamentos, nos níveis de
educação, nos níveis de rendimentos, diferem nos valores, nos
objectivos e nos modos de vida, na forma como ocupam e se
distribuem no espaço, no respeito pelo meio-ambiente e no seu
usufruto, diferem na interiorização e exteriorização da
alegria, da felicidade, da tristeza e do sofrimento, na forma
como decidem e exercem o poder em relação aos seus membros, nas
formas como se adaptam ou resistem às mudanças e aos novos
desafios e diferem na capacidade e rapidez de acção na
resolução dos seus problemas.
Em suma a análise da diversidade e da complexidade das
situações familiares e o esforço que nos conduz à sua
compreensão remete-nos forçosamente para uma abordagem
sistémica de cariz estrutural-funcional, na óptica da teoria
dos sistemas. Este esforço passa em primeiro lugar pela
com-preensão do próprio processo familiar, do seu
desenvolvimento enquanto sub-sistema da sociedade mais vasta, dos
tipos de interacções que estabelece com os restantes
sub-sistemas sociais, se se trata de um sub-sistema aberto,
semi-aberto ou mais fechado; passa pela análise da autonomia
funcional dos sub-sistemas familiares em relação à sociedade
mais vasta e pela análise da capacidade de diferenciação
desses mesmos sub-sistemas. Além disso, e sem esquecer o todo
que é o sistema social total, importa compreender as tendências
de desenvolvimento interno dos sub-sistemas fa-miliares, o que
neles se manifesta de estático e de dinâmico em relação à
sua estrutura normativa e comportamental no que respeita às
funções e papéis familiares, aos papéis dos sexos, às formas
de comunicação interna e externa à família e aos tipos de
relações entre os géneros masculino e feminino intra e
intergeracionais, às formas de comunicação e de interacção
do casal ou do grupo doméstico, às diferenças geracionais no
desenvolvimento das diversas fases do ciclo de vida famil-iar.
Estes exemplos só por si, evidenciam a complexidade da análise,
da compreensão e da explica-ção das características dos
sistemas familiares e da sua interdependência do meio-ambiente e
do nível de desenvolvimento global da sociedade.
A exclusão surge quando há um grande desencontro qualitativo
entre os desafios/estímulos que a sociedade propõe e exige aos
seus cidadãos e o "feedback" dos indivíduos e das
famílias. Algo falha neste processo de comunicação. Sempre que
tal acontece urge investir na melhoria dessas relações de
reciprocidade, ou seja, nas diferentes formas ou níveis de
interacções existentes entre os indivíduos e as famílias e
entre estas e as restantes estruturas sociais. A socialização
primária e secundária é, sobretudo, uma situação de
compromisso, não só, entre o sistema familiar e o in-divíduo,
mas também, entre estes e todos os sub-sistemas do sistema
social total.
3. Conclusão
A velocidade da mudança e da evolução da sociedade portuguesa
acentou as diferenças individuais e grupais, quer em relação
às aspirações e estilos de vida, quer em relação às
capacidades de resposta na resolução de problemas. Coexistem
de uma forma muito mais evidente indivíduos, famílias e outros
grupos com características muito diversas, desde os mais
tradicionais, aos mais modernas ou pós-modernos, e, em função
disso, acentuam-se as diferenças entre si na forma como
socializam os seus membros, e consequentemente influenciam a
capacidade dos indivíduos nas respostas aos desafios ou
estímulos que lhes proporcionam e nas exigências que lhes
fazem, quer individualmente considerados, quer enquanto membros
dos vários grupos sociais.
Na sociedade portuguesa coexistem diversos modelos, o que
constitui a prova mais evidente do processo de modernização e,
consequentemente, de complexificação da nossa sociedade.
Paralelamente são já bem visíveis as diferentes formas de
individualização e de socialização. Para muitos,
especialmente para os mais fracos, e também para aqueles que
fazem do modo de vida o apelo constante aos valores da
solidariedade humana e da tolerância, esta nova realidade
confunde-os e assusta-os porque desconhecem e receiam as suas
consequências.
Em suma, as sociedades e as famílias de hoje apresentam modelos
mistos de individualização e de socialização, uma vez que a
mudança e o desenvolvimento pessoal e familiar não se processam
uni-formemente nem ao mesmo rítmo em todos os meios sociais. As
práticas de socialização primária e secundária são uma
responsabilidade que não cabe, apenas, às famílias e aos
indivíduos, elas são partilhadas pelos cidadãos, pelos grupos
e pelas instituições, Em qualquer sociedade é sempre possível
identificar vários padrões ou modelos de interacção
sistémica correspondentes à diversidade de tipos de
sub-sistemas familiares que compõem o sistema social total.
Sabendo-se que os resultados da adaptação às mudanças
sociais provenientes de um processo de modernização rápida
não são uniformes, é importante testar e investigar
soluções, igualmente "modernas" que eventualmente
contribuam para atenuar as desigualdades, e eliminar o fenómeno
da exclusão sem rejeitar a mudança. Presentemente a ideia de
mudança substituiu a ideia de progresso. A mudança converteu-se
na palavra mágica da modernidade, no seu valor supremo, ou seja,
no grande desafio. Essa mu-dança passa também pela capacidade
de mudar as estruturas encontrando outras, mais solidárias,
embora num sentido moderno, que invistam na re-socialização e
reintegração dos actuais excluídos retirando-lhes
definitivamente o estigma da irreversibilidade da sua situação.
Vislumbram-se já al-gumas ideias e iniciativas positivas nesse
sentido, mas, de momento, estamos numa fase muito embrionária e
ainda não avaliável.
Para o bem comum urge encontrar soluções, e isso passa pela
reestruturação das formas de interacção. Ninguém poderá
abster-se deste esforço, quer enquanto, cidadão, agente
político, quer en-quanto analísta social. Todos somos obreiros
desta passagem podendo funcionar como facilitadores deste
processo proporcionando, através de uma informação
especializada, uma maior harmonização dos conflitos resultantes
da interacção entre o indivíduo, a família, a escola e o
trabalho ou pro-fissão, ou seja, com a sociedade no seu todo.
Actualmente a sociedade, a família e os indivíduos tornaram-se
mais exigentes no cumprimento das obrigações, das funções e
dos papéis sociais e familiares e simultaneamente, mais
intolerantes para os indigentes ou pouco escrupulosos. Vivemos um
momento de avaliação sistemática onde se exige de cada um de
nós, mais dinamismo, mais compromisso, mais participação
activa em todas as facetas da vida pessoal, familiar,
profissional e social, mais eficácia e mais competência no
desem-penho de todos os papéis e funções. Todavia, esta
eficiência não é espontânea terá de ser adquirida pela
socialização embora isso passe por uma vontade de se deixar
socializar; trata-se de um acto objectivo, mas também subjectivo
e perfeitamente consciente. Os que não correspondam a estas
expectativas correm deliberadamente riscos que podem ir da
sanção correctora do comportamento a sanções mais graves de
ostracismo ou de exclusão social.
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