Introdução
Pesquisas recentes, realizadas quer em Portugal quer em países
da Europa Comunitária, revelam que entre os grupos e categorias
sociais mais expostos a situações de forte exclusão e
desqualificação social, são de destacar as minorias étnicas,
que na sua globalidade, e de forma cumulativa, apresentam
mecanismos de empobrecimento e de reprodução circular de
situações de exclusão social.
A este propósito, refira-se que a etnia cigana é o grupo
étnico mais numeroso em território nacional, oscilando os seus
efectivos entre os 30 mil (Machado, s/d) e os 92 mil indivíduos
(Asociacion Secretariado General Gitano, 1992). Com efeito, no
contexto da Europa Comunitária, que contabiliza 1 milhão e 257
mil indivíduos de etnia cigana, a seguir à Espanha (com 500
mil) e à França (com 250 mil efectivos), à Grécia (com 120
mil), ao Reino Unido (com 110 mil), à Itália (com 90 mil) e à
Alemanha (com 65 mil), Portugal é o país que apresenta no
conjunto da sua população uma maior comunidade de indivíduos
de etnia cigana.
Relembre-se a este respeito, que a presença em território
nacional de grupos etnicamente identificados como ciganos data do
século XV, constituindo o grupo étnico com o qual temos
experiência de convívio directo há mais tempo.
Sendo Portugal, uma sociedade multicultural, a convivência de
uma pluralidade de etnias e identidades conhece um alento
renovado, sustentado pela reemergência de se equacionar de forma
séria a situação da etnia cigana e de outras etnias na
sociedade portuguesa, na medida em que esta etnia tem vindo a
revelar uma assinalável vulnerabilidade aos mecanismos de
empobrecimento e de marginalização. Neste contexto, não é de
estranhar que os indivíduos pertencentes a esta etnia manifestem
uma inserção problemática na sociedade envolvente. Com efeito,
na sua grande parte, esses indivíduos encontram-se numa
situação de desvinculação estrutural face ao mercado formal
de emprego, por vezes próximos do que se pode designar por
"economia da delinquência", elevada taxa de
analfabetismo, absentismo e forte estigma escolar, e consequente
abandono do sistema de ensino, inserção profissional prematura
no contexto da economia informal (actividades ligadas à venda
ambulante), baixa qualificação profissional, ausência de
tradição de trabalho assalariado, e assumpção de uma atitude
de retraimento ao nível da participação sócio-política, o
que tem tradução directa num estatuto marginal face aos
benefícios do Estado, em matéria de segurança social,
educação, saúde, emprego, lazer e habitação.
A esta situação de carência e marginalização generalizada,
acrescenta-se a complexidade intrínseca deste grupo minoritário
que se distancia culturalmente da sociedade abrangente,
tendencialmente niveladora, homogeneizadora e altamente
tecnicizada. Sendo dotados de uma identidade e modos de vida
específicos, nem sempre coincidentes ou compreendidos pela
sociedade dominante, e embora não impermeáveis aos valores,
estilos de vida, recursos e potencialidades próprios da
sociedade envolvente, este grupo está claramente exposto a
constantes processos de desestruturação, mutação e
reestruturação. A afiliação étnica estruturada pela partilha
de um quadro de valores peculiar (a valorização dos mais velhos
e da família extensa, o casamento segundo a tradição, a
virgindade, o romanó (a língua falada pelos ciganos
portugueses) e o respeito pelas "leis ciganas") e
diferente da sociedade envolvente afigura-se como um factor
gerador de processos de estigmatização social. De forma
correlativa se reforçam as tendências estratégicas de
fechamento em defesa da sua identidade étnica e cultural, o que
se tem traduzido num processo histórico, de longa duração de
marginalização e ghettização. Este processo não pode ser
dissociado do desconhecimento mútuo que existe entre ciganos e
não ciganos. Com efeito, é neste vazio e ignorância
recíprocas que se inscreve a formação de imagens totalizantes
e estereótipos (representações sociais negativas)
relativamente a uns e a outros, sobretudo por parte da maioria
relativamente à minoria. Em relação, aos ciganos não se
estabelecem propriamente relações, o que existe é um
imaginário sobre relações.
Fenómenos como a incomunicação, incompreensão,
discriminação e segregação reflectem o desconhecimento que
persiste sobre o grupo étnico cigano. Esse desconhecimento, que
também é não reconhecimento, está implicitamente ligado a
atitudes etnocentristas com as quais se pretende romper, de modo
que com este pequeno contributo seja facilitada à maioria a
compreensão das condutas e valores do conjunto étnico cigano,
sem isolar o grupo dos contextos vivenciados e marcados por
processos de marginalização social, cultural, política e
económica.
Assim sendo, são escassas as oportunidades de mobilidade social
e de quebra deste ciclo vicioso de empobrecimento para as
gerações mais jovens e vindouras, admitindo-se a existência
neste grupo de uma situação de reprodução intergeracional de
posições sociais desfavorecidas. Um dos processos que mais
estreitamente está associado aos processos de mobilidade social
na sociedade portuguesa contemporânea diz respeito ao rápido
aumento dos níveis de escolaridade, traço marcante da
evolução da nossa sociedade ao longo das duas últimas décadas
(João Ferreira de Almeida et al., in António Reis (coord.),
1993: 329), não uniforme, porém, quanto aos seus efeitos,
observa-se com efeito, dinâmicas internas heterogéneas no
tecido social. Tal processo está longe de ter tido repercussões
idênticas no grupo étnico cigano, registando-se então, perfis
escolares e sócio-profissionais contrastantes, acentuando-se e
reproduzindo-se deste modo as desigualdades entre ciganos e a
sociedade em geral ("não ciganos"). Constata-se, desta
forma, situações escolares e sócio-profissionais nas
gerações mais novas bloqueadoras de projectos de distinção
social.
Em relação aos jovens antevêem-se poucas perspectivas de
avanço pessoal, dadas as suas insuficientes qualificações
escolares e profissionais. O bloqueamento das oportunidades de
mobilidade social deve-se por um lado, a factores específicos de
discriminação social e de carácter macrossocial (factores de
exclusão social), e por outro, às estratégias de fechamento
social que o grupo acciona face ao exterior, que se manifestam
sempre que o grupo vê ameaçada a reprodução da sua identidade
étnico-cultural (factores de inclusão). À partida
perspectiva-se a reprodução intergeracional de posições
sociais mais desfavorecidas.
Estamos desta forma, perante mecan ÿSM € € (% nto que reproduzem inter-geracionalmente posições
sociais desfavorecidas, sem perspectivas de ascensão social para
os mais jovens, dado serem escassas as oportunidades de estudo e
de trabalho. Tornam-se, assim, potenciais "desqualificados
sócio-culturais", na medida em que não possuem
"«habilidades vendáveis»" (Fernandes, 1991: 65) no
mercado formal de trabalho, potencializando-se processos
cumulativos de marginalização, segregação e estigmatização.
O processo de escolarização não tem sido capaz de incutir
expectativas de mudança futura, uma vez que os jovens são
colocados num "ambiente" e situação
"estranha" face à sua "cultura de origem".
Vivenciam assim, uma situação de "espartilhamento"
entre culturas que tendencialmente se reverte em atitudes
negativas face ao meio social envolvente e uma maior adesão e
autocentramento na identidade cultural de origem (cf. Machado,
1991).
Os ciganos acumulam dois importantes mecanismos que contribuem
para a reprodução das situações de exclusão: o deficit de
escolarização e a inserção na economia informal. O deficit de
escolarização funciona como um mecanismo gerador de pobreza e
de vulnerabilidade à pobreza, tanto para os jovens que procuram
uma entrada no mercado de trabalho, como para aqueles que a
procurarão a curto e a médio prazo, e cujas saídas
profissionais passam pela inserção precoce na economia
informal.
A presente discussão vai focalizar-se na abordagem aos processos
de recomposição sócio-profissional do grupo étnico cigano,
análise alicerçada em elementos de fundamentação empírica.
Deste modo, ao olhar tendencialmente etnocentrista que se lança
do exterior, e que tende a captar uma espécie de homogeneidade
ao nível das práticas económicas exercidas pelo grupo étnico
cigano, concebidas como inadaptadas, tradicionais,
desvalorizadas, marginais; contrapõe-se um "outro
olhar" que capta o dinamismo, a iniciativa, a inovação, a
maleabilidade que caracteriza o exercício das actividades
económicas exercidas pelos ciganos em circunstâncias marcadas
por uma insegurança permanente e por um tratamento
discriminatório secular.
Na delimitação dos mapas de orientação empírica, vimo-nos
confrontados com a necessidade de referenciar o nosso olhar a um
universo não único, a opção metodológica centrou-se na
hipotética exemplaridade analítica de duas áreas de inserção
sócio-espacial do grupo - o concelho de Espinho (incluindo as
freguesias de Espinho, Anta e Silvalde) e Bairro S. João de Deus
(Campanhã, Porto), exactamente por serem aquelas que um
conhecimento prévio, ainda que mais "impressionista"
que cientificamente testado, fundamentava aquela escolha. Ao
incidir a análise em dois contextos sócio-espaciais distintos,
tentou-se assim, garantir uma heterogeneidade de fontes de
opinião capaz de obviar a possíveis distorções resultantes da
concentração espacial da observação e cair numa análise do
que poderia ser exoticamente e não cientificamente relevante.
Optou-se pela utilização das entrevistas biográficas de
carácter semi-directivo aos membros do grupo étnico cigano e
pela observação (ainda que pouco) participante. As opções
técnicas deveram-se ao facto de estarmos perante uma
problemática e universo de análise que exigia uma recolha de
informação de carácter prevalentemente qualitativo. Por outro
lado, a entrevista biográfica permite uma adequada
familiarização no interior de uma "outra" cultura,
que não a que o investigador é portador, e a recolha de
testemunhos sobre as práticas sociais. Ao recolher material, que
num primeiro registo de análise não é mais do que relatos de
experiências vividas, toca-se de perto a questão do sentido das
práticas, não se trata aqui de "transcrever a aventura
individual do informante, mas exprimir os modelos culturais do
seu grupo através do conhecimento que ele tem deles (ou a imagem
que ele deles entende dar); portanto, para lá da idiossincrasia,
espera-se atingir a sociedade de que o indivíduo faz parte"
(Poirier et al, 1995: 93). Entre outras virtualidades,
sublinhe-se as possibilidades que oferece em explorar e
clarificar o "fenómeno da gerações" e o impacte
do(s) acontecimento(s) histórico sobre o sujeito social. A
selecção dos entrevistados obedeceu a certas condições: era
necessário diversificar o trajecto de vida do entrevistado,
tendo em conta a sua posição de centralidade na rede de
relações sociais, assim como a sua pertença em termos de
relações de parentesco dentro das linhagens existentes nos
locais em análise.
Os meios de vida e os perfis profissionais dominantes
Na análise da situação sócio-económica das duas unidades
territoriais, evidenciam-se casos de menores de 16 anos que
trabalham no comércio ambulante (1 caso), bem como de idosos que
recebem uma pensão social, embora o meio de vida preponderante
continue a ser o trabalho (3 casos). De salientar que todos os
activos exercem actividades por conta própria, e simultaneamente
carecem de protecção social, posicionando-se no mercado
informal de trabalho. Na sua grande parte, dedicam-se ao
comércio ambulante, actividade que propicia a colaboração
simultânea no seu desempenho de vários membros do grupo
doméstico.
Os activos são essencialmente feirantes, exercendo tal
actividade nas feiras localizadas no Norte Litoral, de forma
esporádica frequentam as feiras do Interior Norte.
Os entrevistados evidenciam que se trata de uma actividade nem
sempre rentável, fortemente marcada pela sazonalidade,
nomeadamente das datas festivas e das férias de Verão, alturas
de maior ocupação, e por períodos de menor actividade, muito
dependente das condições atmosféricas e da obtenção de
espaços devidamente licenciados nas feiras. O trabalho na feira
implica, por vezes, a aplicação de capital num "bom
lote" (grandes quantidades de produto e a baixo preço), o
que gera algumas dificuldades, uma vez que lhes está vedado o
recurso ao crédito junto das instituições bancárias, as
alternativas residem quase sempre na solidariedade familiar.
Quadro I
Principal meio de vida por área geográfica
PRINCIPAL MEIO DE VIDA | Bairro S. João de Deus |
Espinho |
TOTAL |
Trabalho | 11 |
11 |
22 |
Trabalho e a cargo da família | 1 |
2 |
3 |
Somente a cargo da família | 6 |
5 |
11 |
Pensão | 1 |
1 |
2 |
Trabalho e pensão | 3 |
- |
3 |
TOTAL | 22 |
19 |
41 |
Como será fácil depreender, são profissões mal remuneradas, e
acresce o facto do rendimento não ser fixo. As despesas
domésticas remetem para a subsistência quotidiana e fazem-se em
função do que se ganhou no "dia anterior", nunca são
projectadas a médio e a longo prazo, num contexto
sócio-económico e cultural em mudança. Tal situação leva o
grupo a recorrer por vezes a outras estratégias complementares
de sobrevivência. A subsistência económica do grupo doméstico
é, nalguns casos, possível pelo pedido de subsídio de apoio a
actividades económicas independentes junto da Segurança Social,
ou por via da realização de actividades consideradas ilegais e
socialmente não legítimas - desde o comércio não
regulamentado de relógios e de armas, até à venda de loureiro
por haxixe e ao tráfico de drogas -, o que indicia alguma
"agilidade" e adaptabilidade do grupo com base num
conhecimento consolidado acerca do funcionamento de economias
"subterrâneas" e à margem. Os quotidianos são
marcados pelo imediatismo (estratégia de adaptação em
contextos desfavoráveis), dada a insegurança e a
imprevisibilidade económica que marca o presente.
Insatisfação e dificuldades sentidas face às
práticas económicas exercidas |
"Não dá nada
a feira, agora. Até pouco ganho para comer. A feira já
foi melhor. Isto, mudou para aí há uns 3 anos. Porque
eu até para os princípios estava bem de vida, eu
ganhava bem. Eu não sei o que é isto ? |
Da análise dos principais meios de vida do grupo entrevistado,
constata-se que os adolescentes e os jovens adultos, ainda
solteiros, mantêm um elevado índice de dependência em
relação ao grupo doméstico, embora não se tenha recenseado
qualquer jovem entrevistado como estando na situação de
estudante. A situação descrita é mais evidente nos
entrevistados do Bairro S. João de Deus, enquanto que, em
Espinho são essencialmente as "domésticas" que
denunciam a sua dependência face ao grupo doméstico. Na
análise desta unidade de informação é de notar a reduzida
expressão das categorias referentes ao subsídio de pensão.
O acesso da mulher ao mercado de trabalho restringe-se apenas ao
sector do comércio ambulante. O exercício da sua actividade
profissional faz-se em conjugação com a do marido, num contexto
também ele familiar, procurando-se assim uma solução para a
superação de lacunas que o orçamento familiar possa apresentar
ou no sentido de proporcionar um maior desafogo deste.
O comércio ambulante é uma actividade exercida sobretudo em
família, em que a mulher geralmente surge à frente das
"bancas" apelando e cativando potenciais clientes. Com
efeito, o exercício desta profissão por parte da mulher
constitui "uma solução para uma diversificação dos
tempos e espaços de acção, afirmando por esta via a sua
capacidade produtiva e participativa na economia familiar"
(Freitas e Castro, 1992: 114)., embora, essa tendência seja mais
notória nas entrevistadas do Bairro S. João de Deus e não
tanto nas entrevistadas do concelho de Espinho. Trata-se
essencialmente de uma prática profissional cujo exercício é
influenciado pelo ciclo da vida em que a mulher se encontra, ao
cumprimento dos papéis de mãe e gestora da vida doméstica, a
mulher pode conjugar o exercício de uma actividade económica,
ainda que os motivos que a orientam se situem ao nível das
necessidades de subsistência do grupo familiar.
Mas, o que fundamenta a "singularidade" da identidade
cultural do grupo étnico cigano é a organização social com
base nas relações de parentesco. Em todas as culturas o
"parentesco constitui uma forma de organização das
relações sociais, porém nas sociedades de organização
estatal isso passou para segundo plano, enquanto que nas
sociedades não estatais constitui a base da estrutura social.
Neste sentido, não são já sociedades - conjuntos de
indivíduos com uma organização social comum -, mas povos - de
acordo com a ideia de população biológica" (Xunta da
Galicia, 1991: 156). Assim, o indivíduo no conjunto étnico
cigano encontra-se inserido numa trama social traduzível no
sistema de parentesco e é dele que recebe a sua personalidade
social. "A pertença a um grupo parental é o fundamento do
reconhecimento de uma pessoa como membro de direito dentro da
comunidade. Dentro do grupo o indivíduo encontrará a
satisfação das suas necessidades tanto físicas como afectivas,
a partir dele estabelecerá as suas relações sociais com outros
membros do seu grupo ou de outros grupos parentais, nele
encontrará o seu núcleo básico de defesa e cooperação"
(Ardèvol, 1994: 101). Os lígames que mantém com os parentes
não são de carácter político, social ou económico, mas
"de sangue" (Xunta da Galicia, 1991). Não é
propriamente a mera relação biológica em si mesma que os une,
mas sim as relações de sangue e a sua inserção na estrutura
social de parentesco.
Neste contexto, o conceito de trabalho socialmente construído
pelo grupo étnico cigano deriva e é fortemente determinado
pelas características da sua própria organização social, que
se fundam na família extensa. Esta é concebida como uma unidade
de cooperação, em que os membros masculinos e também femininos
de gerações diferentes trabalham juntos e o rendimento final
pertence ao pai, que o divide entre os seus filhos segundo as
necessidades de cada um, guardando para si o que sobra dos
lucros. O trabalho não é um valor ou um aspecto da vida em que
se pode obter realização pessoal, mas uma condição
indispensável à sobrevivência quotidiana. A este propósito,
J. Pierre Liégeois (citado pelo Grupo PASS, s.d.: 61) refere que
o trabalho deve deixar disponibilidade ao homem no sentido de ele
dispor do seu tempo, para ocupar-se dos seus assuntos sociais e
"fazer relações sociais" - visitar familiares ou
algum doente, reunir-se com os amigos -, o que só é possível
se existir independência económica, que é um dos elementos que
marcam a identidade constitutiva do cigano, e na qual baseia a
preservação da sua identidade.
No grupo étnico cigano, a incorporação no mercado de trabalho
faz-se a partir de determinado limiar etário - entre os 10 e os
12 anos -, momento a partir do qual o indivíduo está apto a
desempenhar uma actividade profissional. Para o conjunto étnico
cigano, a criança quando atinge aquela faixa etária torna-se
num jovem adulto, que é necessário preparar no sentido de
assumir tarefas e responsabilidades no seio do grupo familiar e
do grupo étnico. Neste sentido, tende a intensificar-se estas
aprendizagens informais, com uma forte componente afectiva e
emocional em ordem ao exercício das actividades económicas. A
educação da criança é então concebida como um acto e
processo colectivo. De uma forma geral, a criança vive no seio
de "3 ou 4 gerações, e a sua socialização tem lugar
neste conjunto que assegura coesão, coerência, continuidade e
segurança" (Liégeois, 1987: 61).
Desde muito cedo, a criança é envolvida no processo de sustento
familiar, ajudando os pais na feira, principalmente os rapazes,
enquanto que, as raparigas têm ao seu cuidado as tarefas
domésticas e os irmãos mais novos, facto que se assume como uma
condicionante, pois, regra geral, as famílias são numerosas.
Não se trata aqui de "trabalho infantil" ou de
práticas de "exploração dos menores" tendo em vista
a subsistência do grupo familiar, trata-se outrossim de uma
colaboração entre as várias gerações, em que as crianças
participam nos trabalhos dos pais e avós.
Numa dinâmica de cooperação, os pais organizam as actividades,
com o propósito de proporcionarem aos seus filhos a aquisição
de uma diversidade de competências - a responsabilidade, a
autonomia, a adaptabilidade, a capacidade de negociar e de
persuadir, a polivalência, a capacidade de sobrevivência, etc.
(cf. Liégeois, 1987).
A aprendizagem da actividade profissional não requer apenas a
preparação que a formação escolar pode proporcionar (ainda
que básica), mas realiza-se, como era norma nas sociedades
tradicionais, mediante a transmissão de conhecimentos e
experiências de pais para filhos. Embora, na actualidade, os
pais estejam cientes da importância da educação formal, para a
grande parte basta que os seus filhos aprendam "a ler e a
escrever", competências básicas que correspondem às
necessidades exigidas ao exercício das actividades profissionais
tradicionalmente assumidas pelos membros do grupo - associadas ao
comércio ambulante. A educação é aquela que é transmitida no
interior da colectividade enformada pelo seu e outros grupos
familiares. Os conhecimentos e o sistema de valores que se incute
às crianças faz-se por via de um sistema de educação não
formal e informal, que se traduz em aprendizagens feitas no
quotidiano, prioriza-se neste processo as qualidades e os valores
que contribuem para a manutenção e persistência do grupo
familiar, bem como aquelas que permitem a adaptabilidade e a
independência do sujeito face ao "ambiente social
estranho" ao grupo cigano. Deste modo, se reproduz nas novas
gerações as actividades profissionais que melhor se coadunam
com a idiossincrasia do grupo. Por exercerem, na sua
generalidade, actividades económicas independentes, recusam
alternativas que passam pelo exercício de actividades
profissionais por conta de outrem, fazendo alusão às
dificuldades que sentiriam ao trabalhar nessas condições. As
actividades económicas só serão exercidas se permitirem ao
indivíduo ser independente, ou seja, na medida em que
possibilitem ao indivíduo o livre uso do seu próprio tempo.
Percepção subjectiva face à eventualidade de trabalhar como
assalariado por conta de outrem
"Não, não. Nem pensar. Um patrão, era demais para mim. Para patrão, basta eu." (Masc., 36 anos, possui a 1ª Classe, feirante, residente no Bairro S. João de Deus). |
"Está bem que se tivesse que ser era, mas, custava mais ter um mandante ali; depois se a gente não faz direito, ele vai começar... custa muito para um cigano porque não aguenta, tem que responder, então, se responder é logo despedido." (Masc., 19 anos, possui o Ensino Preparatório completo, feirante, residente no Bairro S. João de Deus) |
"O cigano não dá muito para receber ordens de outros, gosta de andar pela sua própria cabeça, não gosta de andar a cumprir ordens, isso será o único motivo porque o cigano não se aventura para outros negócios e trabalhos." (Masc., 22 anos, possui a Instrução Primária completa, feirante, residente em Ovar) |
"Temos uma profissão que está quase enraizada na nossa vida - ser vendedor, porque uma profissão não dá satisfações a ninguém, numa palavra, liberdade. Isso, está no sangue." (Masc., 56 anos, possui o Antigo 5º Ano, vendedor no domicílio do cliente, residente em Espinho) |
Lentas diferenciações intergeracionais na estrutura
socioprofissional
Ainda a propósito da análise dos processos de recomposição
social no conjunto dos entrevistados ao longo das duas últimas
gerações, nomeadamente ao nível da composição
sócio-profissional, observa-se que as mutações ocorridas na
matriz intergeracional não nos permite concluir sobre a
visibilidade e a notoriedade das alterações nos destinos
sociais e das famílias dos entrevistados, na medida em que o
leque das profissões exercidas ainda se confina à categoria
sócio-profissional dos "trabalhadores não qualificados do
comércio" (vendedor ambulante). No entanto, uma análise
mais atenta dos depoimentos dos entrevistados, permitiu detectar
ligeiros e circunscritos processos de recomposição social ao
nível da estrutura sócio-profissional intergerações.
Outrora (pelo menos, há duas gerações), um dos perfis
profissionais dominantes era o de "vendedor de porta em
porta", que vendia essencialmente "cortes de
fazendas" e tapetes. Esta categoria foi dando lugar a uma
figura que ainda persiste na actualidade, a do "vendedor no
domicílio do cliente". Trata-se de um processo de venda em
grandes quantidades no sector da revenda ou a clientes habituais
e a título particular, implicando uma fase prévia de
demonstração de produtos - tecidos, tapeçarias, antiguidades e
louças -, no domicilio do cliente (existe, assim, uma espécie
de "carteira" de clientes já conhecidos e que de forma
regular importa "visitar").
A "venda porta a porta" era uma actividade com
carácter "errante", associado a um modo de vida não
(ou ainda "mal") sedentarizado ("o
nomadismo"), caracterizando-se por intensas dinâmicas
geográficas que envolviam todo o agregado doméstico. Está-se
perante um perfil social e profissional cuja presença está bem
marcada no universo sócio-simbólico dos entrevistados enquanto
associado a um modo de vida característico da geração dos seus
pais e avós. Outrora, como actualmente o nomadismo era
assimilado à vagabundagem, enquanto modo de existência
"inquietante", "suspeito", vivenciado por
indivíduos "parasitas" da sociedade envolvente.
Contudo, não se detecta a sua presença na geração dos
entrevistados, facto que poderá ser melhor intelegido se se
atender entre outros factores (que mais adiante serão
avançados), ao processo de sedentarização, que ao nível
profissional possibilitou uma certa estabilização da actividade
económica do grupo, uma vez que, esta, passou a fazer-se segundo
rotinas, a ser regulada social e institucionalmente e a ter lugar
em mercados e feiras, mediante a concessão de licenças por
parte das autarquias locais.
Refira-se que a actividade económica dos ciganos sempre teve um
carácter periférico face no mercado e economia formal. Do modo
de vida caracteristicamente nómada que durante séculos se
identificou com este grupo étnico, forjaram-se ofícios
tradicionais como a cestaria e o comércio de gado, actividades
económicas exercidas de forma dominante pelos ciganos
portugueses, oferecendo assim produtos e serviços que tinham
valor de troca numa sociedade eminentemente rural. Porém, nos
inícios do séc. XX, e nomeadamente nos anos 40/ 50, o processo
de industrialização e de urbanização, o recuo da produção
artesanal e mais tarde do sector agrícola, a evolução das
necessidades no universo do consumo, assim como os imperativos
inerentes às lógicas da racionalidade económica, determinaram,
com efeito, a sua sedentarização e a sua "readaptação
profissional", sendo escassas as suas possibilidades em
termos de inserção em outros contextos profissionais, dadas as
credenciais e qualificações escolares que possuíam. Neste
contexto, actividades como o comércio ambulante e de forma mais
restrita as actividades ligadas ao mundo do espectáculo são
"ofícios adaptados" dos tradicionais ofícios através
dos quais tentam subsistir social e economicamente, embora,
consideradas pela sociedade em geral, ora, como marginais, ora,
como expedientes provisórios.
As suas actividades profissionais não constituem tanto uma
profissão, mas mais actividades de subsistência. São
essencialmente actividades profissionais que se integram na venda
de bens e serviços a clientes não ciganos. Ainda hoje, estes
hábitos e predisposições para o comércio implicam
deslocações constantes na procura de clientes, de fornecedores,
de produtos e novas oportunidades de negócio. Torna-se, assim
indispensável dispor de uma espécie de liberdade económica
(independência), que gera por sua vez uma liberdade geográfica,
indispensável à prospecção intensiva e por vezes, em locais
distantes do seu "locus" de residência.
Uma vez que a aprendizagem das actividades económicas se faz
primordialmente em contexto familiar, enquanto uma das
componentes da educação global do indivíduo, então, cada
"indivíduo possui um leque de competências que o tornam
polivalente e, por isso, muito adaptável. É formado, desde a
infância, por uma aprendizagem ao lado de seus pais;
aprendizagem à diversidade e à mudança, e não de aquisições
para o exercício de um único ofício. Segundo, o lugar, o
momento e a ocasião, saberá inserir a sua prática económica
nas circunstâncias económicas que a determinam."
(Liégeois, 1987: 283).
Assinale-se que entre as duas gerações e independentemente do
contexto geográfico em análise, assiste-se a um relativo, ainda
que restrito, declínio dos profissionais pertencentes à
categoria dos "trabalhadores não qualificados do
comércio". Neste cenário, constata-se ainda que 17
entrevistados se inserem nesta categoria sócio-profissional,
enquanto "Isolados", registando-se alguns ligeiros
fluxos de "mobilidade social" ascendente protagonizados
pelo despontar de trajectos profissionais com inserção em
categorias como a do "pessoal de serviços e
vendedores", com 3 entrevistados : 2 entrevistados, na
situação de "patrões" (comerciantes com
estabelecimento próprio) -, e a dos "técnicos e
profissionais de nível intermédio" (1 entrevistado) por
conta própria.
Verifica-se assim, entre as duas gerações, uma redução (- 2)
ainda que pouco notória da percentagem de vendedores ambulantes
(feirantes), que de pais para filhos cai de 26 para 24, e um
correlativo aumento das domésticas e dos jovens a viver a cargo
da família (englobados na categoria "outros"), valor
que assume alguma relevância na geração dos filhos - 10
indivíduos. Comparativamente aos pais, a segunda geração
apresenta alguma diversidade ao nível das trajectórias
sócio-profissionais.
Quadro II
Mobilidade social no Bairro S. João de Deus e
Espinho - Profissões exercidas
PROFISSÕES EXERCIDAS | PROFISSÕES DO EGO (FILHOS) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
|
|
LEGENDA: 1- Feirante e vendedor ambulante 2- Vendedor no domicilio do cliente 3- Vendedor de porta em porta 7- Outros (domésticas, a cargo da família) 4- Músico 5- Comerciante com estabelecimento 6- "Cobranças difíceis" |
Configura-se genericamente uma tendência no
sentido ascendente, com o exercício de profissões socialmente
mais qualificadas, ainda que esse valor englobe um número
restrito de efectivos: 2 entrevistados inserem-se na categoria
"pessoal dos serviços e vendedores" (comerciantes com
estabelecimento próprio), 1 entrevistado no "pessoal dos
serviços directos de protecção não classificados em outra
parte" (responsável por cobranças difíceis), e 1
entrevistado aos "técnicos e profissionais de nível
intermédio", nomeadamente aos "profissionais de
criação artística, cantores e bailarinos de espectáculo de
variedades" (músico profissional). Embora, as condições
de existência do grupo étnico cigano sejam, particularmente
vulneráveis aos períodos de dificuldades económicas e de
instabilidade social, tal situação tem propiciado o
aparecimento de outras estratégias de sobrevivência, para além
de confirmar o seu dinamismo e adaptabilidade secular às
circunstâncias sócio-económicas flutuantes.
Registe-se a este propósito, algumas diferenciações nos
entrevistados das duas unidades territoriais em análise. Ser
vendedor no domicilio do cliente é uma prática profissional
mais corrente em Espinho (9 efectivos), comparativamente ao
Bairro S. João de Deus (prática inexistente), sendo exercida
quase de forma exclusiva pelos membros de uma das famílias que
há mais tempo está sedentarizada em Espinho (no mínimo há 50
anos). Trata-se de um tipo de actividade comercial já
desenvolvida pelos pais (6 indivíduos), perspectivando os
activos que a exercem (3 entrevistados) como uma actividade
socialmente mais qualificada que o "comércio
ambulante", actividade percepcionada pelos entrevistados de
Espinho como menos dotada de prestígio.
No plano das aspirações profissionais "idealizadas",
mas não concretizadas, nota-se uma maior descoincidência no
conjunto dos entrevistados do Bairro S. João de Deus, - 9
entrevistados (7 do sexo masculino e 2 do feminino), enquanto
que, em Espinho, esse valor ronda os 4 entrevistados (3 efectivos
masculinos e 1 feminino). Os projectos profissionais idealizados
orientam-se para profissões tão diversas como a de comerciante
com estabelecimento próprio (4 entrevistados), mecânico auto (3
entrevistados), jogador de futebol (2 entrevistados), estilista
(2 entrevistados), costureira (2 entrevistados), empregado de
escritório (1 entrevistado), manequim e/ou cabeleireira (1
entrevistado), médica e pintor (1 entrevistado). São na sua
maioria os mais jovens que demonstram maior insatisfação ao
nível profissional, contudo, esses projectos desvaneceram-se
já, e vivem "sem projectos", dadas as condicionantes
estruturais a que estão sujeitos e que determinam os destinos
pessoais e familiares, em ordem à coesão e preservação da
identidade social e étnica do grupo. O futuro consubstancia-se
em perspectivas e contextos existenciais que se situam na
confluência dos das gerações anteriores.
No caso das jovens, esse fenómeno é mais nítido, não se
antevendo possibilidades de estas virem a concretizar os
projectos profissionais desejados, dadas as limitações e a
auto-regulação de que são alvo ao nível das suas opções de
vida. Enquanto crianças, os contextos socializadores em que se
encontram inseridas são influenciados pelos sistemas de valores
e representações que aí circulam, o que funciona no sentido de
favorecer as relações e interacções com os membros do grupo,
e restringir ao mínimo as relações "estranhas" ao
grupo étnico. Nestes contextos, o controle social é exercido
quotidianamente, de forma mais apertada e cuidada principalmente
sobre os efectivos do sexo feminino. A socialização faz-se no
sentido da coesão e não separação do indivíduo face ao
"corpo social", o que pode implicar um maior ou menor
grau de inculcação de uma espécie de temor face ao exterior,
ao estranho, enquanto reacção à rejeição e tratamento
discriminatório de que são alvo por parte da sociedade global.
Projectos profissionais não concretizados
"Gostava de estudar e trabalhar como toda a gente, e fazer tudo o que me apetecesse, tudo o que me desse na ideia, tudo o que quisesse eu fazia, e agora eu não estar - "vou fazer aquilo; ai, não vou fazer". Isto, custa muito, para mim, eu quero e não posso : eu quero fazer uma coisa e não posso fazer porque eu sou cigana. (...) Gostava de ser estilista. No meu pensamento, se eu não fosse cigana eu conseguia mesmo, e se eu tivesse algum sonho, como ser estilista, eu acho que eu conseguia. O futuro É um futuro igual ao das outras pessoas como nós - casamos, cuidamos dos filhos, vamos a uma feira, é só. Casamos e pronto, ficamos, mais nada. (Fem., 16 anos, possui a Instrução Primária completa, sem profissão, residente em Espinho) "Gostava de costureira. Porque para os ciganos nem todas as profissões são dignas, por exemplo modelos, cabeleireiros não é adequado para as ciganas. Não sei porquê, nem me pergunte porquê, porque eu não sei ! Nem é uma questão de ser menos importante, mas acho que fica mal na vida de ciganos, não sei ! Nem todas as profissões fica bem. Agora, costureira é uma coisa normal, que é a coisa que eu posso ser. (...) Se me arranjassem aqui pertinho, eu ia." (Fem., 17 anos, possui a 2ª Classe do Ensino Primário, residente no Bairro S. João de Deus) "Logo quando entrei na escola sempre disse que queria ser médica, e isso nunca me saiu da cabeça. Eu adorava de ser médica. É o interesse, quando as pessoas entram num hospital dizem "ai que horror e não sei quê", eu adoro o cheirinho, eu adoro tudo, eu quando vou ao hospital, eu entro pelas salas adentro, eu aprecio aquelas coisas todas, eu adoro .(...). Para Janeiro, sou capaz de arranjar um trabalho. Dever ser assim costura - é assim uma coisa que eu não gosto - tem que ser aqui perto. Se for com a minha cunhada o meu pai deixa-me, sozinha é que eu não posso ir." (Fem., 15 anos, possui o Ensino Preparatório completo, sem profissão, residente no Bairro S. João de Deus) |
Os contextos escolares e profissionais são contextos do
"mundo não cigano", representando assim uma certa
"ameaça", com efeitos desestruturantes nos projectos
de que são portadores, e que se orientam primordialmente no
sentido da preservação da sua coesão social e afirmação de
uma identidade e cultura autónomas. Emergem receios de que se
verifiquem contradições e desvios ao que é transmitido no meio
familiar e comunitário. A preocupação maior reside nas
relações que possam traduzir-se numa "fusão"
(assimilação) com os não ciganos, preocupação acrescida face
às raparigas, que são socializadas no sentido de não
estabelecerem relacionamentos de amizade e de namoro com os não
ciganos, o que é mais facilmente controlável quando aquelas se
circunscrevem à vida familiar e se mantém no interior do grupo,
mas deixa de o ser na medida em que estas alargam os círculos de
relações, nomeadamente quando se inserem numa instituição que
é exterior ao grupo.
É representação corrente no seio do grupo que a formação
escolar só tem utilidade para a rapariga até aos 10 anos, tempo
suficiente para que saiba ler e escrever, o que não é mais do
que uma das estratégias que permite evitar o aprofundamento dos
contactos com os não ciganos - comportamentos de per si
censuráveis no interior do grupo. Por outro lado, é de evitar o
exercício de actividades profissionais que saem fora do controle
social, simbólico e geográfico do grupo. Outras competências
são inúteis e desnecessárias, pois priva e retarda
aprendizagens familiares orientadas para a assumpção do seu
futuro papel de mães e esposas.
Projectos profissionais projectados na geração vindoura
Se se atender ao projecto profissional desejado para os filhos,
evidencia-se posições polarizadas em torno desta questão.
Existe, ainda alguma persistência no sentido de confinar o
futuro profissional dos filhos às profissões tradicionalmente
exercidas pelo grupo étnico cigano no domínio do comércio
ambulante (13,5% das escolhas). Em oposição, emergem no seio do
conjunto dos entrevistados escolhas que saem fora desse domínio,
argumentando acerca do esgotamento dessa via, enquanto
"saída" profissional para os jovens e gerações
vindouras. Assim, em virtude de argumentos como a forte
imprevisibilidade que caracteriza o sector desqualificado do
comércio ambulante, da concorrência dos hipermercados e centros
comerciais e da abertura das fronteiras que "rebaixou"
o valor comercial dos produtos têxteis, não se detectou nos
entrevistados do Bairro S. João de Deus aspirações orientadas
para o exercício de tal actividade profissional por parte dos
filhos.
Como se pode observar, em Espinho, a escolha preferencial dos
entrevistados recai sobre a profissão de vendedor ambulante,
havendo assim, uma projecção no sentido da continuidade e da
não mobilidade ao nível da composição sócio-profissional
intergeracional, o que poderá também ser tomado como sinal de
algum "realismo" por parte dos entrevistados. Com
efeito, perante a incerteza e a imprevisibilidade do futuro
próximo, a atitude adoptada consiste em viver o presente; e, no
imediato, são as actividades económicas praticadas pelos
Ciganos que são as "melhores" porque constituem sempre
um garante da sua subsistência.
Mais do que o conjunto dos entrevistados de Espinho, os do Bairro
S. João de Deus questionam as alternativas profissionais que se
colocam às gerações vindouras. Com efeito, quer os jovens
entrevistados, quer os seus ascendentes não vislumbram outros e
novos canais de inserção sócio-profissional. A este
propósito, refira-se que para J. P. Liégeois, os ciganos têm
experenciado nos anos mais recentes, dificuldades acrescidas em
subsistir, enquanto grupo étnico-cultural minoritário,
encontrando-se num dos períodos mais críticos da sua História:
"abstraindo do tratamento discriminatório de que são
vítimas há séculos, abstraindo das regulamentações coercivas
que os cercam, actualmente é, em certa medida, a crise
particularmente económica das nossas sociedades que os rodeiam
que acarreta também sobre eles dificuldades de adaptação e que
conduz, nos outros, a um aumento de rejeição" (1987: 69).
Expectativas dos pais face ao futuro
profissional dos filhos
"Paros meus filhos ? Eles é que sabem, não
é ? |
A profissão que hoje em dia é dotada de maior prestígio para a
generalidade dos entrevistados é a de jogador profissional de
futebol, reunindo 24,3% das escolhas, e constitui o projecto
profissional mais aspirado para os filhos por parte dos
entrevistados do Bairro S. João de Deus, afigurando-se como uma
profissão que proporciona "muito dinheiro" e permite
encarar o futuro com maior segurança (31,6% das escolhas).
Em Espinho, no domínio das segundas e terceiras escolhas, surge
na mesma ordem de importância a profissão de advogado (16,7 %
das escolhas) e a de jogador de futebol (16,7%), destaque-se
ainda a projecção "idealizada" em torno de outras
categorias sócio-profissionais, que se enquadram na categoria
dos "especialistas das profissões intelectuais e
científicas" - médico (11,1%) e engenheiro (11,1%).
Panorama diferente, se observa nos entrevistados do Bairro S.
João de Deus, que valorizam mais as categorias relativas ao
"pessoal administrativo", notando-se alguma
atractividade pelo trabalho realizado em ambiente de escritório
- "trabalhar com papéis e a escrever" (15,8%), que as
profissões intelectuais e científicas, assumindo neste
contexto, algum destaque apenas as profissões de médico e de
professor(a), respectivamente com 10,5% das escolhas.
"O Luís fala em ser Juiz, desde pequenino que
ele diz isso, mas, pronto... Mesmo Medicina é um dos
cursos mais caros e difíceis de fazer, que eu sei ! Não
quero que eles sigam o meu ramo, nenhum deles. Porque
quero que eles tenham assim um bom nome, um juiz e um
médico está seguro daquilo que ganha, já é uma
segurança, já não é vender roupas que não é uma
segurança total; tu és médica tens aquele ordenado e
pronto." (Masc., 29 anos, casado, tem 2 filhos,
possui a Instrução Primária completa, comerciante,
residente na Maia) "Sei lá, um emprego bom. Sei lá, ou Engenheiro, ou de computadores. Não queria nada que tivessem que andar nas ruas." (Fem., 38 anos, casada, tem 2 filhos e 1 filha, possui a 3ª Classe do Ensino Primário, doméstica, residente em Espinho "Eu queria que fosse advogado ou futebolista, mas ele é que escolhe. Ou, então, se ele não conseguisse, uma boa carrinha e muito material, e fosse assim um homem de negócios na feira, que vendesse aos ciganos." (Fem., 29 anos, vive em união de facto, 1 filho, possui a 3ª Classe do Ensino Primário, doméstica, residente em Espinho |
As limitações ao nível das opções profissionais também se
colocam no plano da projecção em termos de um projecto
profissional futuro. Para as filhas, as aspirações voltam-se
maioritariamente para o sector do comércio ambulante.
Vislumbram-se já, ainda que escassas, outras possibilidades,
como a profissão de professora, enfermeira e manequim. Porém,
os entrevistados que manifestaram estas escolhas estão cientes
da difícil exequibilidade destas aspirações, dados os valores
e as dinâmicas sociais internas ao grupo, pouco susceptíveis à
mudança no que toca ao estatuto conferido à mulher.
Projecto profissional desejado para as
filhas
"Ainda não pensei nisso ! Por exemplo, modelo.
É uma coisa que eu gostava que a minha filha fosse. Mas,
nesta lei assim cigana não dá. Mas, era uma coisa que
eu gostava, tanto gostava para ela como para mim. Mas,
não se pode. (...). Têm mais possibilidades os homens
do que temos nós. Mas, também não podem ser modelos e
sair em biquini." (Fem., 17 anos, casada, tem 1
filha, possui a 2ª Classe, feirante, residente no Bairro
S. João de Deus) "Por exemplo, o meu filho mais velho desde que ele começou a estudar, tive a ambição que ele continuasse a estudar e parece que este ano ele vai continuar, e tinha a ambição que o meu filho fosse advogado, por exemplo. O outro quer ser veterinário, e é uma ideia óptima dele, e oxalá que ele continue com essa ideia. A minha filha ? Vai ser um pouco mais difícil ela optar por uma profissão (...), mas eu gostava que a minha filha estudasse e tivesse uma profissão de Enfermagem; secretária e coisas assim, já não, é uma coisa que eu não gosto. Mas, Enfermagem ou coisas assim. Eu gostava que a minha filha estudasse. Não dou a palavra definitiva, porque elas...também é um pouco difícil para elas, não sei! Mas, os meus filhos, sim !" (Masc., 35 anos, casado, tem 2 filhos e 1 filha, possui a 3ª Classe do Ensino Primário, vendedor no domicílio do cliente, residente em Espinho) |
Reflexões finais
Embora, as capacidades de adaptabilidade demonstradas pelo grupo
étnico cigano se tenham traduzido em melhorias nas suas
condições sócio-económicas, não houve correspondência em
termos de protagonismo sócio-político e em distintividades
sociais. Observa-se, algumas situações de mobilidade social,
porém, tal fenómeno está longe de ter a tradução e a
repercussão num projecto mais alargado de promoção e
concretização seus próprios projectos de mudança pessoal e/
ou grupal com impacte no seu estatuto social e na construção de
uma imagem pública positiva.
Assim, ao equacionar-se a capacidade de acção e de decisão dos
actores sociais sobre a mudança, verificou-se que os trajectos e
projectos de vida se apresentam condicionados a determinados
constrangimentos, tais como: o preconceito, a rejeição e o
estereótipo secular, os baixos níveis de escolarização, a
inserção precária no mercado de trabalho, a participação
política, associativa e cívica passiva, o não exercício dos
direitos de cidadania, assim como, o deficiente usufruto de
benefícios e apoios estatais na sua plenitude. Neste cenário,
regista-se mesmo uma ausência de perspectivas, ou seja, de
projectos de vida assentes numa óptica de mobilidade social
ascendente no que concerne a ambos os grupos empíricos. Assumem
assim, uma atitude de apatia e descrente quanto à sua capacidade
de protagonismo no sentido de mudança. As vivências são
marcadas pelo tempo presente e por referência a um passado
reprodutor de marginalizações cumulativas. Torna-se, então,
necessário ter em conta a dinâmica da reprodução social, por
força do peso dos constrangimentos sociais. Mudança e
reprodução é uma constante tensão no trajecto social dos
grupos.
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