Ao terminar a Guerra do Paraguai, a sociedade brasileira atravessava inúmeras dificuldades vinculadas ao governo monárquico escravista, já então, em franco declínio; mas, por outro lado, percebia-se um crescimento da sociedade civil, tendo em vista que vários segmentos sociais defendiam mudanças e sobretudo o fim da escravidão, sem sombra de dúvida transformada na maior questão social do final do século XIX. A guerra converteu o Exército brasileiro numa instituição coesa e organizada, mas sem oferecer nos seus quadros possibilidades de ascensão à massa de soldados negros, ex-escravos e brancos pobres que, teoricamente, eram incapazes de gozar das prerrogativas da cidadania. O oficialato, embora ampliado, ficava restrito às classes proprietárias e camadas médias. A estrutura excludente do sistema escravista era preservada dentro do exército recém organizado. A visão de cidadania da elite militar da época contribuiu muito para isto, pois consideravam-na um direito reservado àqueles capazes de compartilhar os valores morais da sociedade imperial. Os jovens oficiais, logo após o conflito, reagem a esta contradição, lutando pela Abolição e chegando mesmo a fazer do Exército, um canal de participação dos setores sociais insatisfeitos com a ordem imperial. Mas, lentamente, o conservadorismo absorveu esta rebeldia e o povo foi transformado em uma abstração. O conceito envergonhado do povo brasileiro, conforme afirma Salles (1990) - povo doente, mestiço, analfabeto - impregnou a liderança militar. Liderança esta que, no início do período republicano, em nome da ordem e do progresso, passou a reprimir duramente as manifestações de revolta destas camadas. Canudos, Contestado, Revoltas da Vacina e da Chibata foram eliminadas a ferro e fogo durante a Primeira República. O exército, embora republicano, preservava o elitismo e o conservadorismo do passado imperial. As elites, de forma geral, falavam de um povo inexistente que povoava o imaginário destes setores, enquanto o povo real deveria ser civilizado, já que era visto com desprezo, vergonha e desconfiança. A exclusão de grande parte da população dos direitos de cidadania não encontraria no exército republicano um opositor; pelo contrário, a rebeldia dos jovens oficiais abolicionistas e republicanos foi substituída pelo velho conservadorismo, típico das elites imperiais, agora vivendo no novo regime. Os relatórios de Caxias sobre a Guerra do Paraguai demonstram a clara preocupação de constituir um exército moderno, incorporando jovens oficiais por mérito, rejeitando as promoções por influências de uma lei de conscrição militar, comum já em outros países; contudo, a estrutura escravista, mais uma vez, impedia o avanço da modernidade, pois conscrição, sem cidadania plena a toda a sociedade, só repetia o quadro social excludente dentro do exército: novos oficiais promovidos por merecimento neutralizando o efeito da presença de elementos oriundos das camadas servis e massas desprezadas pelas elites imperiais. A função integradora do exército ficava comprometida na medida em que um número enorme de soldados eram libertos, comprados para a guerra e posteriormente a ele incorporados junto a brancos livres e pobres, base da tropa que lutou no Paraguai. Os excluídos que, dentro do país, tinham seus direitos políticos negados e mínimos direitos sociais, deveriam agora defender os interesses nacionais. Esta foi, sem dúvida, uma contradição que a guerra colocou em evidência. Os chefes militares deixavam transparecer em suas atitudes todo o temor de uma sociedade escravista que, na emergência de um conflito externo, vê-se diante de uma massa de despossuídos que tanto poderia defendê-la ou voltar-se contra ela. As atitudes de Caxias revelam este temor, bem como a concepção excludente sobre a realidade social, fato, aliás, muito bem analisado por Izecksohn (1997). Como relata Salles (1990), o próprio atraso no pagamento do soldo aos praças era visto como benéfico e disciplinador, evitando deserções. Certamente o caso dos oficiais era diferente, devendo receber em dia para prover seus gastos pessoais. A sociedade escravista dispunha da vida dos indivíduos como propriedade. O caráter paternalista instalava-se até no Exército que aspirava ser moderno como o das nações adiantadas. Nada é mais revelador desta mentalidade do que as opiniões sobre a condecoração de praças pelo governo, vista por Caxias como fator que estimulava a indisciplina, já que os oficiais teriam que tratar de forma diferenciada os contemplados. Recomendava que recompensas em dinheiro, pensão e condecorações fossem conferidas pelo comando e aconselhava dar baixa aos praças para evitar indisciplina. Os bravos oriundos das camadas populares eram incapazes de valores mais elevados; assim, a exclusão dentro do exército justificava a ordem imperial escravista moralmente, daí não poder ser quebrada. Os castigos corporais violentos foram outro recurso utilizado pelo comando para manter a disciplina sobre os soldados egressos da escravidão e eram destinados a submetê-los da mesma maneira que o eram, quando ainda escravos. A Guerra do Paraguai obrigou o Estado Imperial a modernizar o exército, mas isso era impossível sem aceitar a igualdade jurídica e a ampliação da base social. Estas contradições explicam a inércia do exército diante do abolicionismo, defendendo abertamente a não perseguição de escravos fugitivos e a própria Questão Militar de 1884, episódio que contrapôs posições abolicionistas de jovens oficiais da Guerra do Paraguai e o governo imperial. Sodré (1980), analisa este momento com grande propriedade dizendo que, de um lado estavam os políticos mais retrógrados da monarquia e do outro, os militares cujas tendências eram pela abolição e alteração do regime. As lideranças abolicionistas, em sua maioria, eram dissidentes das classes dominantes, daí a incapacidade desta aliança com os militares alterar de forma estrutural a sociedade. Estes acabaram derrubando a monarquia mas sem bases políticas e, após um breve período no poder, voltaram aos quartéis. As oligarquias, mantendo a mesma estrutura econômica, deram prosseguimento a uma economia agrário-exportadora, controlada pelas elites e mantendo a exclusão social. O cerne da discórdia, conforme Izecksohn (1997), residia no fato de os militares de carreira criticarem, durante a guerra, os procedimentos da elite política relativos aos assuntos militares, estendendo as críticas, posteriormente, a toda a organização política do império, classificada como corrupta, incompetente, verbosa, daí o crescimento da oposição militar à monarquia. A Guerra contribuiu para expor as mazelas do governo imperial e permitiu que oficiais, insatisfeitos com a instituição, formulassem um projeto alternativo de governo capaz de administrar melhor as questões sociais que incomodavam há muito. Os militares que haviam se formado em moldes mais profissionais, sobretudo a partir da guerra, percebiam ser impossível uma tropa unificada carregando em seu âmago diferenças sociais tão gritantes. Os relatos do Cel. Sena Madureira, de André Rebouças e mesmo de Dionísio Cerqueira, memorialistas do conflito, deixam bem claras estas posições. Portanto, a guerra expôs as dificuldades da organização militar e levou os oficiais do núcleo profissional a se voltarem contra a monarquia, difundindo idéias abolicionistas e republicanas em confronto com os antigos chefes militares ainda leais ao imperador. Diríamos que o ideal de Salvação Nacional estava nascendo, bem como o desprezo com que os militares viam a elite política civil. Formavam-se, durante a guerra, duas concepções estratégicas antagônicas no meio do oficialato: a sincrética e a corporativa, esta última produzida pela descrença no sistema de governo, visto como incapaz de conduzir o país à modernidade e ao progresso, daí a vinculação a novas formas políticas capazes de unir a instituição e estabelecer uma identidade. Curiosamente, a rebeldia e a inquietação, após a Proclamação da República, serão cada vez mais substituídas por um espírito conservador e, embora tenham colaborado para implantar o novo regime, este terá, como característica básica, a exclusão social dos direitos de cidadania da quase totalidade da população brasileira. "A ABOLIÇÃO LIBERTOU OS BRANCOS DO FARDO DA ESCRAVIDÃO E ABANDONOU OS NEGROS À SUA PRÓPRIA SORTE" (Florestan Fernandes) A introdução do escravo africano no Brasil ocorreu exatamente como em outras partes da América, ou seja, vinculada à economia exportadora na chamada infância do capitalismo, tendo por objetivo a acumulação primitiva do capital e sempre para suprir a escassez de trabalhadores indígenas, dizimados ou afugentados pela conquista ou ainda protegidos pela igreja. No Brasil, o índio foi quase sempre a segunda opção, já que, na Amazônia e na pobre São Paulo seiscentista, era a única. A posse de escravos conferia status e poder na sociedade colonial. Embora algumas correntes da historiografia vejam a escravidão brasileira como benigna e paternalista, não anulam seu caráter explorador, sendo o trabalho compulsório obtido graças a severas punições e recompensas. Conforme afirma Costa (1979), os estereótipos negativos associados à aparência física do negro eram comuns entre nós, apesar do bom trânsito racial do português. Os portugueses tanto quanto os ingleses os consideravam bárbaros, imorais, com costumes estranhos à sua cultura. Desde o início, a situação do escravo esteve definida na sociedade e nem a conversão ao cristianismo alterou este quadro. Enquanto na América Inglesa estas questões incomodavam os colonos, entre nós estavam resolvidas. A Igreja, através da "guerra justa" encontrou a sustentação ideológica para a escravidão. Funcionando como intermediária entre senhor e escravo, aconselhava a um obediência e ao outro benevolência. A Igreja Católica era uma instituição universal com uma visão hierárquica do mundo social, justificando suas desigualdades. A elite agrária brasileira não tinha escrúpulos éticos como os colonos saxões, que, influenciados pela ética protestante com ênfase no indivíduo, na disciplina, no trabalho e na negação ao ócio, percebiam toda a incoerência da instituição da escravidão. Estávamos mais próximos aos fazendeiros do sul dos Estados Unidos, um misto de capitalistas e cavalheiros. Quanto a relações raciais, enquanto a miscigenação entre os saxões era proibida, entre nós era livre, daí a grande quantidade de filhos ilegítimos na classe proprietária. Enganava-se quem pensasse que este fato alteraria o quadro social. Os filhos mulatos eram, muitas vezes, reconhecidos, mas segregados a um sistema de patronagem e clientela, com sua ascensão controlada pela oligarquia. Alguns mulatos eram alçados à classe dominante e, ignorando suas origens, agiam e eram tratados como brancos. O ADVENTO DO LIBERALISMO E A ESCRAVIDÃO No século XIX, o capitalismo industrial necessitava de mercados consumidores e tanto escravidão como o monopólio eram prejudiciais a seus interesses, pois reduziam, bloqueavam o consumo e o acesso às fontes produtoras de matérias-primas e consumidoras de produtos industrializados. A nova filosofia, expressão dos interesses de seu tempo e destes grupos, passou a atacar a escravidão. No Brasil, este fato coincidiu com a expansão da lavoura cafeeira que demandava muita mão-de-obra. Os interesses da classe proprietária escravista entraram em confronto com o liberalismo e seus dogmas: trabalho e comércio livres. Nos Estados Unidos, o racismo transformou-se no grande argumento para justificar a escravidão. Em um mundo marcado pela secularidade e pelo racionalismo, a legitimidade da escravidão era discutida numa realidade onde o pensamento liberal avançava e, naturalmente, a inviabilizava. No Brasil, os grandes proprietários resistiam, criando formas de convivência entre o liberalismo e a escravidão. Nas áreas urbanas liberais radicais, vinculados às profissões ilustradas, ao comércio e ao clero, atacava-se a escravidão, acusando-a de improdutiva, anti-ética e anti-econômica. A elite, pressionada pela Bill Aberdeen, lei que autorizava a marinha inglesa a apresar navios negreiros, após contrabandear um número impressionante de escravos, aprovou a Lei de Extinção do Tráfico em 1850. A longo prazo, a escravidão estava mortalmente atingida. A partir daí a grande questão que se colocava para o debate na sociedade era: como regularizar as relações entre negros e brancos após a abolição? A reduzida elite branca temia a chamada haitização do Brasil. No Haiti, a sangrenta independência e a abolição levaram à expulsão dos brancos do país pela maioria negra. No início do século XIX, as rebeliões escravas, dentre elas a dos Malês (1835) na Bahia, confirmavam o temor de uma inversão da ordem social entre nós. Ao longo do século XIX, duas tendências foram surgindo para ultrapassar a heterogeneidade racial e social: os emancipacionistas, que pensavam em integrar os marginalizados, escravos ou não, numa sociedade progressista e unida, sendo os abolicionistas adeptos desta postura; a outra facção, composta pelos imigrantistas, não se preocupava com o destino do ex-escravo, e defendia o ingresso de correntes imigratórias para purificar a raça, superando também a carência da identidade e nacionalidade, já que faltava na visão deste grupo, uma "ética nacional" para nos constituirmos num povo. Tavares Bastos, deputado pela Província de São Paulo, foi o arauto desta corrente. A inferioridade racial do negro e os males advindos da escravidão eram argumentos para a entrada de imigrantes europeus ou asiáticos, deixando claro o viés racista. Pereira Barreto e Silvio Romero, intelectuais da época, afirmam, também, suas posições racistas e depreciativas sobre a raça negra. Já Joaquim Nabuco, uma das maiores lideranças da abolição, a via como uma transição, resultado da própria transformação da sociedade rumo ao trabalho livre. A tese da miscigenação e branqueamento da raça é comum nestes autores, bem como a visão otimista em relação ao futuro do país. Além da inferioridade racial, vários autores estrangeiros que visitaram o país no século XIX, como Louis Couty, médico francês, radicado no Brasil exercendo a função de professor universitário no Rio de Janeiro, levantam também a questão de que o negro era insociável, sem laços familiares, desagregado e com sentimentos primitivos, tendo perfil semelhante ao de um criminoso. Os mulatos eram vistos com maior tolerância, reconhecendo-lhes qualidades, embora limitadas, ao exercício de funções mais modestas, bem de acordo com o pensamento evolucionista de Herbert Spencer. As correntes migratórias viriam apressar a abolição, ao trazer elementos sociais avançados, considerados os imigrantes como os únicos capazes de resgatar o velho Brasil do atraso, da ignorância e transformá-lo num país moderno e progressista. Como podemos perceber, no imaginário social das elites, conforme nos diz Azevedo (1987), os argumentos contra o negro, de início, são baseados na inferioridade cultural, passando a biológica ou ao chamado racismo científico, no qual o negro é descrito como incapaz para o trabalho, com tendências à desagregação e ao crime, enquanto o imigrante é visto como a força restauradora do vigor físico e do valor do trabalho, indispensáveis à cidadania e ao progresso. O negro, em virtude do aviltamento da escravidão e por pertencer a uma raça inferior, seria responsável até pela passividade, apatia e indisciplina que caracterizariam os trabalhadores nacionais, em confronto com o sucesso material do trabalhador imigrante. O medo da chamada onda negra, revoltas, anarquia e ameaça da maioria da população constituída de negros e mestiços, levou à idéia de uma abolição lenta e gradual, uma transição necessária para conter estas massas e garantir a grande propriedade. A ordem, que levaria ao progresso, estava, portanto, bem dentro da lógica positivista. A incapacidade do negro para o trabalho livre e não o sangue africano era uma idéia bem mais ajustada ao mito da democracia racial, praticada entre nós, ambas, contudo, de fundamentação racista. A Província de São Paulo, assolada por fugas e crimes envolvendo escravos desde a década de 1840, tomou a iniciativa de introduzir o imigrante, fazendo vultosos gastos e tentando barrar a entrada de negros, substituindo-os por trabalhadores livres. Por incrível que pareça, até os abolicionistas radicais que promoviam fugas em massa, denominados "caifazes", liderados pelo fazendeiro Antonio Bento, preocupados com a prosperidade da Província de São Paulo, sugeriam medidas para garantir a ordem social e conter os libertos, ajustando seus interesses aos dos grandes proprietários. Deve-se reconhecer, contudo, que esta corrente acreditava no potencial da força de trabalho nacional para atingir o progresso e a harmonia social. Assim, as facções da elite política que conduziram a abolição, quer na perspectiva do imigrantismo com todo seu ideário racista ou do abolicionismo, só viam um lugar na nova ordem social para o negro: submisso e controlado pela elite proprietária. Como ressalta Azevedo (1987), importantes líderes abolicionistas de origem africana tais como, José do Patrocínio e André Rebouças, não ficaram imunes à propaganda imigrantista baseada em "teorias científicas". Embora defendessem a incorporação dos nacionais ao mercado de trabalho, saudavam com entusiasmo a vinda de trabalhadores pertencentes às raças mais inteligentes e ativas da humanidade e falavam da esperança de um futuro no qual, por influência destes elementos, o quadro social brasileiro melhoraria. Joaquim Nabuco, embora apoiasse a imigração européia, era dono de um espírito acentuadamente nacionalista. Durante sua permanência em Londres, abandonou posições raciais e abraçou, cada vez mais, a idéia liberal, acreditando na incorporação da força de trabalho nacional e chegando a propor uma reforma agrária para atingir a regeneração do trabalho e a harmonia social. Aconselhava impostos territoriais ou desapropriação para terras incultas. Os positivistas reforçaram, também, a idéia de paraíso racial, rechaçando as colocações de que a abolição seria uma ameaça à paz interna e ao desenvolvimento. Lembravam que o negro, segundo os ensinamentos de Comte, era essencialmente afetivo, o que indicava superioridade moral; além disso, era resignado e submisso, nada indicando que após a libertação caísse no desregramento e no ócio. Defendiam a tese de que a escravidão degradava senhores e escravos e que a harmonia social viria com a incorporação gradual do ex-escravo ao trabalho livre. Concluindo, tanto os abolicionistas como os imigrantistas, preocupados com a continuidade do desenvolvimento capitalista, procuravam assegurar a paz e a ordem social, mas, enquanto os abolicionistas e positivistas acreditavam na incorporação ao trabalho do negro livre e trabalhadores nacionais, os imigrantistas reforçavam a idéia da incompatibilidade do negro para o trabalho, a vagabundagem, o ócio e o desregramento em virtude de características raciais inferiores. Lembramos que, sobretudo em São Paulo, triunfaram as propostas imigrantistas, em virtude do medo branco, das revoltas negras, crimes e, também, pela importação das teorias científicas raciais que aqui chegavam na bagagem dos jovens da elite que retornavam de seus estudos na Europa. A herança deixada por estas concepções racistas refletiu-se nas dificuldades que o negro encontrou em termos de ascensão social na sociedade de classes. AS CONTRADIÇÕES DO PARAÍSO RACIAL Gilberto Freyre proferiu uma série de palestras nos anos 40 nos Estados Unidos - "Interpretação do Brasil" - e nelas ressaltava a importância da miscigenação. Freyre discutia as origens da democracia racial entre nós, atribuindo muito mais peso às diferenças de classe do que ao preconceito racial, para justificar as razões da distância social. A mobilidade social e a livre expressão cultural dos negros no Brasil seriam responsáveis por uma consciência negra menos radical do que a existente nos Estados Unidos. Além disso, através da miscigenação, os negros foram se incorporando ao grupo branco, no conhecido processo de branqueamento da raça. O mulato, visto pelas "teoriais raciais científicas" como degenerado, era entendido por Gilberto Freyre como capaz social e intelectualmente, expressando, através de suas idéias, a visão que a maioria da elite branca e até alguns negros tinham sobre as relações raciais no Brasil, conforme nos afirma Costa ( 1979). Nos anos 50 e 60, a corrente revisionista, formada dentre outros por Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, chegou a conclusões totalmente diferentes - os negros tinham sido informalmente segregados e empurrados para as camadas mais pobres da sociedade, tendo reduzidíssimas chances de ascensão social e sofrendo discriminação quando competiam com os brancos (Cardoso,1977). Os revisionistas foram acusados de criar problemas onde estes não existiam. O mito da democracia racial, de certa forma, auxiliava a reduzir o conflito social, tanto quanto nos Estados Unidos o mito do self made man ajudou o homem comum a conviver com as diferenças de classe, segundo Costa (1979). No Brasil, a idéia da democracia racial atenuava a discriminação e o preconceito. Por outro lado, o mito da democracia racial retardou o nascimento da consciência negra, pois alguns negros e sobretudo os mulatos eram alçados ao mundo dos brancos, sendo chamados "negros de alma branca" e, quando isto ocorria, como já salientamos, os beneficiados faziam questão de ignorar suas origens e agir como se brancos fossem. São conhecidos os casos de mulatos ilustres como Machado de Assis, André Rebouças e Nina Rodrigues que, ignorando sua filiação racial, eram tratados como brancos, vivendo a ilusão ambígua destas relações e sendo apontados como notáveis exemplos de ascensão social em nosso meio, confirmando, assim, a tese do paraíso racial. O mito da democracia racial poderia ser explicado como uma distorção da realidade social em benefício das elites, que, pouco seguras de sua pureza racial, utilizavam-se dele para enfrentar as teorias racistas européias do século XIX. O branqueamento da raça, a integração e a assimilação eram nossas respostas para a questão racial; além disso, branco, entre nós, seria aquele que tivesse tal aparência, independente da origem racial. A partir da década de 20, o declínio da política oligárquica, a derrocada do sistema de clientela e patronagem e o desenvolvimento de uma economia capitalista urbano-industrial, sobretudo a partir da Revolução de 1930, geraram o aproveitamento do exército de reserva de trabalhadores. Estes, predominantemente nacionais, ao contrário dos operários da primeira geração, constituídos quase que exclusivamente de estrangeiros, fizeram vir à tona toda a questão racial, em virtude da competição entre brancos e negros no mercado de trabalho. No entanto, o papel subserviente que a sociedade tradicional e as relações paternalistas reservaram para o negro não se ajustavam aos novos tempos. Após a Segunda Guerra Mundial e a derrota das ideologias racistas pelos aliados, as questões raciais passavam a despertar um interesse crescente. O Brasil constituía-se, neste campo, numa referência, sendo sempre descrito como o paraíso da convivência racial. Poderíamos fornecer conhecimentos para melhorar as regiões conflituadas por problemas raciais. Este novo contexto provocou os estudos dos anos 50 e 60, que resultaram, ao contrário das expectativas, nas teses revisionistas. Nos anos 50, o censo revelava dados que desmentiam o paraíso racial: 60% da população era formada por brancos; 25%, mulatos e 11%, negros. Quanto à escolaridade elementar, 10% dos alunos eram mulatos e 4% negros. Nas escolas secundárias, 1% do alunato era negro e 2%, mulatos; nas universidades, 2% eram mulatos e 0,25% negros. Estas estatísticas revelavam a verdadeira face da exclusão. Nos anos 60, a luta política contra as oligarquias atingiu seu ponto máximo e os cientistas sociais, destruindo o mito da democracia racial e as falsas imagens sobre as relações sociais entre nós, desvendavam a verdadeira natureza das relações raciais e colaboravam, como dizia Ianni (1966), para o avanço da civilização brasileira e para o processo de democratização da sociedade, idéias compartilhadas por Florestan Fernandes, outra grande referência no estudo das relações raciais. Este grupo de cientistas sociais, vinculados, sobretudo, à Universidade de São Paulo e outras instituições surgidas a partir dos anos 30, eram oriundos da classe média e camadas inferiores, que ascenderam pelo maior acesso à educação na década de quarenta, atingindo a universidade. Os trabalhos deste grupo avançaram muito na compreensão da natureza das relações raciais, crítica e análise das informações, valorizando, sobretudo, dados científicos e pesquisas. Embora nas regiões mais afastadas e interioranas do país o clientelismo sobreviva, sob novas roupagens, mascarando e preservando o mito da democracia racial, acreditamos que, na atualidade, estas questões passaram a ser vistas com menos utopia e mais espírito científico. O BRASIL NÃO TEM POVO, TEM PÚBLICO: AS VERSÕES DO MESMO FATO EM SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO Quando percorremos hoje as ruas das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, podemos notar, com muita facilidade, o alto número de marginalizados sociais que habitam essas metrópoles. Essa situação, embora rotineira, ainda nos deixa perplexos, causa-nos inquietação e o desejo de buscarmos entender esse fenômeno social, suas origens e as razões que levaram, os dois maiores centros urbanos do Brasil, a apresentar este perverso quadro social. O povoamento de São Paulo foi fruto da inadequação do litoral vicentino à agroindústria açucareira e da tentativa de interiorizar-se a colonização, estando seu início, também, profundamente relacionado aos projetos de catequese e introdução de normas e valores europeus pelos padres jesuítas. Durante muitos anos, os que ali viviam obedeciam mais às autoridades religiosas do que às político-administrativas e os estudos de Morse (1970), sobre o processo de ocupação e desenvolvimento do solo paulista, comprovam esta afirmação. A marginalização econômica de São Paulo, sem dúvida, decorreu da inexistência de produtos que atendessem aos interesses mercantilistas da Metrópole. Nos dois primeiros séculos, essa cidade distinguia-se pela extrema pobreza de seus habitantes, fato rememorado, inclusive, em episódios curiosos como o da conhecida Cama de Gonçalo, único morador a possuir um leito decente para emprestar a uma autoridade em visita à região. Foi também essa situação específica que ajudou a construir a imagem, heróica para alguns e pouco honrosa para a historiografia recente, dos bandeirantes paulistas, que adentraram o interior do Brasil em busca de índios para serem utilizados como mão-de-obra nas suas lavouras de subsistência, ou à procura de riquezas minerais, encontradas, posteriormente, na região das Minas Gerais. Foi durante o bandeirismo que a cidade passou, segundo dados oficiais, a possibilitar, a alguns de seus moradores, um certo acúmulo de bens, sobretudo no final do século XVIII, quando, através dos caminhos abertos, a cidade foi tornando-se ponto de afluxo de mercadorias, sendo significativo neste período, o comércio de muares que acabou tornando-se a maior fonte de renda da região. Desde que São Paulo, em 1560, passou a ter o status de vila até 1711, quando foi elevada à categoria de cidade, no sistema colonizador português, a região ainda apresentava evidentes sinais de pobreza; entretanto, estes não eram aparentes nos relatos oficiais. Outra dificuldade, com relação aos dados estatísticos, diz respeito ao fato de os cadastros oficiais preocuparem-se apenas com as "cabeças-de-casal", sendo os demais membros existentes, dentro ou fora das famílias, como mulheres, jovens, crianças, agregados, serviçais ou escravos, não computados. No caso de São Paulo, o mapeamento da exclusão foi dificultado, também, pela tardia presença do escravo negro e da riqueza e pela existência de uma camada intermediária que se situava entre os dois pólos, composta por homens livres brancos ou negros. Uma das poucas referências precisas sobre a questão da pobreza, durante os períodos colonial e monárquico, é a existência da esmola, doação distribuída a critério da Irmandade de Misericórdia que, provavelmente, atuava desde a fundação de São Paulo, sendo, em 1599, já mencionada em testamentos. A principal função da Irmandade, dirigida por leigos, era a de recolher contribuições dos ricos e distribuí-las aos pobres, o que ocorria de forma eventual, não sistemática, contemplando, principalmente, os órfãos. No estudo desenvolvido por Sposati (1988), sobre a assistência social em São Paulo, esta atividade desenvolveu-se de acordo com a antiga concepção de atender circunstancialmente aos pobres, sem nunca enfrentar as raízes que geraram a pobreza. Idéia ampliada por Kowarick (1976), quando declara que a existência de serviços públicos não resolve os problemas da pobreza, mas sua ausência agrava as condições da população, revelando, também, na nossa opinião, o grau de exclusão existente nessa sociedade. Não havia, portanto, nesta época, um projeto social que visasse à reintegração do marginalizado, mas apenas a uma ação - esmola - que aliviava a consciência dos mais abastados, principalmente em suas atuações enquanto cristãos que acreditavam na recompensa de suas boas ações. Por outro lado, as contribuições eventuais ofertadas pela Irmandade de Misericórdia às órfãs, podem ser interpretadas como atos de controle, já que, muitas vezes, o dinheiro ofertado assemelhava-se a um dote e, com esse recurso, as moças deveriam encontrar marido e casar-se em data estipulada pelas autoridades - o dia da festa da Visitação, em 2 de julho. Desta forma, em termos sociais, passariam a ser sustentadas por seus maridos e não ingressariam na marginalidade social. A situação econômica de São Paulo passou efetivamente a mudar com o desenvolvimento da cafeicultura, inicialmente na região do Vale do Paraíba e, posteriormente, no oeste Paulista, a partir da segunda metade do século XIX, caracterizado por empregar, prioritariamente, a mão-de-obra livre do imigrante europeu. A partir da segunda metade do século XIX e, acentuadamente, nos últimos anos do Império, o setor urbano paulista iniciou um processo de desenvolvimento que alterou a configuração existente no início do século XIX, época em que as cidades eram meros apêndices do campo. Este vigor urbano inicial estava relacionado à própria economia agrário-exportadora, pois o café, na última década do século XIX, representava 61,5% das exportações. A cafeicultura possibilitou a ampliação e a diversificação das atividades comerciais, de transporte, serviços e manufatureiras e acabou gerando renda e acumulação internas, mesmo sendo a base econômica dependente dos mercados europeus e norte-americanos. Furtado (1982), analisa esse momento e comprova o aumento de mais de 200% nas exportações brasileiras. A acumulação de capital decorrente da nova atividade alterou a configuração urbana em São Paulo, não só pelo crescimento demográfico, já que, entre 1890 e 1900, a população na cidade passou de 65 para 240 mil habitantes, mas também, pelas diversas atividades surgidas em função da cafeicultura. A instalação das primeiras ferrovias, ligando as fazendas produtoras ao porto de Santos, teve íntima relação com o novo perfil, pois a facilidade de deslocamento possibilitou a muitos fazendeiros fixarem residência na capital, surgindo bairros e ruas nobres como Campos Elíseos e Higienópolis e a sossegada Avenida Paulista de 1900. Possibilitou, também, que os trabalhadores rurais buscassem melhores condições de vida na área urbana e que bairros menos nobres se formassem. Mais do que mudanças aparentes na fisionomia da cidade e da atividade econômica, mudaram as relações de produção e as formas como riqueza e pobreza se relacionavam, passando-se da economia mercantil baseada no trabalho escravo para uma economia estruturada nos moldes capitalistas, com a formação de mão-de-obra assalariada tanto no setor urbano quanto no rural. Sposati (1988), ao analisar as sociedades capitalistas contemporâneas, afirma ser fundamental observar que tratamento essas sociedades, através da ação do Estado, dispensavam aos pobres que elas próprias geravam. Essa nova configuração urbana revelava a marca cosmopolita da metrópole atual, o que pode ser percebido nos relatos de viajantes e cronistas que percorreram a cidade na passagem do século XIX para o século XX. Segundo George Clemenceau (1912), São Paulo era quase européia, com construções no belo estilo italiano; para Roberto Capri, a cidade era curiosamente francesa e para o padre francês Gaffre, alguns recantos paulistanos assemelhavam-se a Nova Iorque. A viajante Gina Lombroso, em 1908, afirmava que o italiano era mais falado em São Paulo do que em Turim, Milão e Nápoles. Mas, para o brasileiro Jorge Americano, nas noites de domingo, a cidade parecia com Trinidad ou Barbados e Archibald Forrest assinalava que todos - italianos, portugueses, alemães, ingleses e negros africanos percorriam os mesmos caminhos durante o lazer. Obviamente, estes viajantes estrangeiros falavam de locais restritos da cidade, o ocupado pelas elites. No Brasil, nas principais cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, o capital agrário teve profunda ligação com a industrialização e o proletariado urbano que se formou era composto, no caso paulista, na sua maioria, por imigrantes europeus. Entre 1890 e 1928, cerca de três milhões e meio de imigrantes europeus entraram no Brasil; destes, 57% se dirigiram a São Paulo. Este novo trabalhador, que se fixa no território brasileiro, se, de um lado, engrossou as fileiras dos baixos salários, graças à excessiva oferta de mão-de-obra, por outro, cooperou, mesmo não intencionalmente, para desqualificar o trabalhador nacional. Essa situação só sofreu alteração por ocasião da Primeira Guerra Mundial, que interrompe temporariamente a imigração, abala as exportações e acelera o desenvolvimento industrial brasileiro, criando a necessidade de contratação da mão-de-obra nacional. Durante esse período, São Paulo passa a recorrer à mão-de-obra dos migrantes de várias regiões brasileiras, sobretudo do Nordeste. Em 1915, por exemplo, o governo do Estado de São Paulo financiou o deslocamento de cinco mil cearenses para suprir as necessidades locais de trabalho. A ocupação do espaço urbano, cada vez mais, indicava e determinava o status e a marginalidade social; os excluídos foram empurrados para áreas mais afastadas ou ocuparam cortiços e porões em bairros centrais. Outros habitaram as humildes moradias dos bairros fabris ou a eles adjacentes, como o Brás, Moóca e Barra Funda. As reformas, levadas a cabo no decorrer do processo de urbanização das primeiras décadas da República, ao afastarem as camadas populares das áreas centrais, cooperaram para a ocupação de novos espaços, em sua maior parte, sem infra-estrutura para abrigar os novos moradores. As indústrias ocupavam os espaços entre as várzeas e as ferrovias, surgindo bairros em áreas desvalorizadas, com moradias baratas, estrutura precária de iluminação, saneamento e transporte. No setor fabril, expressou-se claramente o movimento contraditório entre riqueza e pobreza, daí a greve de 1917, iniciada nas fábricas têxteis da Moóca e do Ipiranga e depois ampliada aos demais setores e bairros, paralisando completamente a capital paulista e colocando em disputa o movimento operário influenciado pelas idéias anarquistas e socialistas e a classe proprietária, amparada pela Força Pública estadual e Exército nacional que imprimiram um forte aparato repressivo ao movimento. Guardadas as especificidades, os operários lutavam por melhores condições de trabalho, já que estes trabalhadores não ganhavam nem o suficiente para um sustento decente. Em 1919, por exemplo, com jornada diária de 10 a 12 horas, um trabalhador ganhava menos do que a metade dos 207 mil réis, calculados oficialmente como o mínimo necessário para que uma família composta por quatro pessoas pudesse sobreviver. As dificuldades econômicas, a ausência de leis trabalhistas e a constante oferta de mão-de-obra proporcionada pela migração ou pela imigração, fizeram com que muitos, fugindo do desemprego e camuflando a exclusão, procurassem abrigo em casas de família, aí executando pequenos serviços, surgindo, assim, a figura do agregado urbano, já comum no meio rural brasileiro. A sistematização dessa prática levou o prefeito da cidade, em 1914 - Washington Luiz Pereira de Souza - a criar uma lei municipal que obrigou esses agregados a se identificarem, o que demonstra a tentativa de controle do poder público sobre a massa excluída, preocupando-se com a segurança das famílias que os abrigava, principalmente com relação a doenças contagiosas que pudessem transmitir, a furtos que cometessem, além de evitar que os agitadores anarquistas pudessem encontrar formas de sustento. Um relatório de 1927 comprova que destes agregados, cerca de 46% eram estrangeiros, o que mostra que os serviços mal remunerados não eram privilégio dos trabalhadores nacionais, mas de todos que sentiram necessidade de lutar contra a pauperização. No estudo - "Controle social e criminalidade em São Paulo: um apanhado geral ( 1890- 1924)", desenvolvido por Bóris Fausto, em Pinheiro ( 1983) o autor demonstra como a questão social era mesmo um caso de polícia, relatando a grande defasagem entre o número de pessoas presas e as realmente processadas (em 1893, para 3 466 pessoas presas na capital, apenas 329 inquéritos foram abertos; em 1905, o número de presos foi de 11 036 e o de inquéritos, 794). Grande parte destes presos, considerados vadios e desordeiros, eram, na verdade trabalhadores desempregados que compunham o exército de reserva, formado por ex-escravos ou imigrantes europeus, muitos dos quais, como denuncia a imprensa operária, militantes anarquistas, socialistas, grevistas e sindicalistas, e "desordeiros", para os defensores da "ordem". Nota-se, então, que o desenvolvimento urbano gerou a preocupação nas elites de controlar, de instituir a ordem urbana e de aproximar a cidade aos padrões europeus que povoavam seu imaginário. As áreas ocupadas pelas camadas populares passaram a ser fiscalizadas principalmente no aspecto da higiene, pelo temor que epidemias se alastrassem pela cidade. Assim, os cortiços surgidos nos antigos casarões do centro de São Paulo, e identificados pelas elites como locais sujos e imorais, foram palco de situações constrangedoras a fim de se atingir o padrão imaginado. As medidas, na realidade transcenderam a preocupação com a higiene e deixavam claro a presença do poder e do controle social, já que o Código Municipal de 1886, além da questão da higiene, proibia a utilização de máscaras durante o carnaval e reduzia o horário de funcionamento das tavernas. Fazem parte das preocupações do Estado, na organização do sistema urbano, a ampliação do presídio, já que as elites, descontentes com a liberdade do negro, apontavam que o número de crimes, de atos de vadiagem e alcoolismo e, anos mais tarde, as reivindicações operárias, tornavam necessária uma penitenciária que abrigasse um maior número de marginais. Moraes (1995), afirma que havia um descompasso em São Paulo entre o desenvolvimento industrial e a oferta de empregos. Acrescenta que, na passagem do século XIX para o XX, para uma população de quase 300 mil, apenas 5 mil operários estavam vinculados diretamente ao trabalho em indústrias de grande porte e que a grande maioria dos habitantes sobrevivia de trabalhos temporários, informais e instáveis; assim, na cidade, o espaço ocupado pela pobreza era disputado por italianos, caipiras e negros. Os trabalhadores, sem leis protecionistas, encontravam no mutualismo e nas associações de socorro mútuo, formas de enfrentar as dificuldades, sendo a Beneficência Portuguesa, criada em 1859, a organização mutualista mais representativa do operariado paulistano, embora muitas outras tivessem sido criadas, como pode ser observado no levantamento elaborado por Gohn (1995). Em São Paulo, aos poucos, foi se formando um proletariado urbano e, mesmo antes da abolição, a redução de escravos era significativa - em 1872, para uma população de 31.385 habitantes havia 3.828 escravos; quatorze anos mais tarde, o número de habitantes elevou-se para 47.697 e o de escravos foi reduzido para 593 . Nas primeiras décadas do novo governo republicano, a força econômica de São Paulo institucionalizou-se. A oligarquia formada pelos agricultores paulistas, mesmo antes da Proclamação da República já era economicamente forte, embora não estivesse, durante a República da Espada - 1889-1894 - controlando completamente o setor político, o que ocorreu, a partir de 1893 com a criação do Partido Republicano Federal, que foi o instrumento utilizado pelos representantes do Partido Republicano Paulista para garantir e legitimar a ampliação de seu domínio político no país. As oligarquias estaduais, lideradas pelos cafeicultores paulistas, conseguiram a adoção de suas idéias federalistas e se impuseram na condução política do país, principalmente após a ascensão dos primeiro presidente civil, Prudente de Morais, que representava os interesses das oligarquias rurais, sobretudo na aliança entre São Paulo e Minas Gerais, concretizada através da "política do café-com-leite" que visava à alternância de seus representantes no poder. A Constituição de 1891 determinou a forma federativa, concedendo, portanto, ampla autonomia aos estados brasileiros e número de representantes na Câmara dos Deputados proporcional à quantidade de habitantes que cada uma das unidades da federação possuía. Desta forma, os estados mais ricos e populosos, como São Paulo, sobressaíram-se frente às elites nordestinas. O sufrágio universal, passível de controle pelas elites, através do " voto de cabresto", substituiu o antigo voto censitário e passou a considerar eleitor todo cidadão alfabetizado, valorizando os estados mais ricos e ampliando as diferenças sociais e as desigualdades regionais, não trazendo alterações, no tocante ao exercício da cidadania à maior parte da população, que continuou excluída da participação política. No plano econômico, a oligarquia cafeeira utilizou a política de valorização do café em seu próprio benefício, em detrimento dos interesses do comércio, indústria e camadas populares. As camadas populares paulistas, excluídas sempre das alterações observadas na urbanização, tal como as cariocas, passaram a criar formas de enfrentar a ausência de cidadania, procurando expressar sua cultura, como ocorreu, por exemplo, no bairro do Bexiga, nas procissões e festas religiosas, como a de Nossa Senhora de Achiropita, ou na criação de times de futebol populares e de cordões, embriões das escolas de samba, que conseguem aglutinar pessoas de raças diversas mas com identidade comum no aspecto marginalidade. Como afirma Lucena (1983), cordões carnavalescos e festividades religiosas propiciaram a união entre o calabrês e o negro, desta forma, a Festa de Achiropita, desde o início do século tem sido abrilhantada por samba e zabumba. A cidade do Rio de Janeiro, criada no século XVI, durante a invasão francesa à Baia da Guanabara em l565, teve de início funções militares e administrativas, convertendo-se na capital da colônia em 1763, quando o eixo econômico transferiu-se para a região aurífera, Minas Gerais. O Rio de Janeiro era o porto exportador do ouro, centro político e elo de ligação entre a metrópole, região platina e África. Com a chegada da Corte portuguesa, em 1808, trazendo cerca de 20 mil pessoas, alterou-se bastante o ar provinciano e pobre da cidade, que adquiriu por força das circunstâncias, um certo verniz cultural. Contudo, a presença de enorme massa de escravos, quase 50% da população, na época da independência e 40%, em 1850, deixaram marcas evidentes em sua formação e desenvolvimento. Enquanto São Paulo transformava-se graças à imigração e à indústria, onde predominava a mão-de-obra estrangeira, no Rio 50% da força de trabalho era constituída por trabalhadores nacionais, atingindo, no início do século, mais de um milhão de habitantes. Este lumpen, por herança da escravidão, formava um contingente de trabalhadores domésticos, mão-de-obra não especializada, permanecendo à margem do mercado ou sobrevivendo de trabalhos temporários, além do segmento que vivia na mais absoluta marginalidade. Os estrangeiros, no Rio de Janeiro, constituíam cerca de 30% da população, destes 70% eram lusos e praticamente monopolizavam alguns setores econômicos e profissionais : 53% dos empregados de transportes, 40% dos artesãos e 51% dos empregados do comércio, carroceiros e cocheiros, 90%. Na classe proprietária, 30% eram estrangeiros. As casas de aluguel, sobretudo as habitações populares, eram também propriedade de portugueses, bem como a maioria do capital financeiro, imobiliário e comercial. (Carvalho, José Murilo). Tais fatos acabaram gerando um certo espírito anti-lusitano na população carioca da época, transformando-se o imigrante português em alvo das campanhas jacobinas. Com o advento da República, surge a Lei da Grande Naturalização, que estabelecia o prazo de seis meses para estrangeiros manifestarem o desejo de permanecer com sua cidadania; caso contrário, seriam declarados brasileiros. As colônias estrangeiras não viam com entusiasmo o processo de naturalização, já que as vantagens da cidadania brasileira eram pequenas e ainda poderiam ser recrutados para o serviço militar. Apenas 20% dos estrangeiros naturalizaram-se. A força política de cada embaixada, sem dúvida, foi responsável por este resultado. No caso dos portugueses, talvez pela pouca pressão de sua representação diplomática, em sua maioria tornaram-se brasileiros. Estas características poderiam, em parte, explicar o comportamento das massas e seu reduzido interesse na política republicana: 50% da força de trabalho era constituída de nacionais, em sua maioria libertos, analfabetos, fora do mercado de trabalho, sem direito ao voto e 50%, estrangeiros com pouco envolvimento na vida política da cidade, embora devamos ressaltar a presença, sobretudo, de portugueses em greves e manifestações do início do século. Outro dado interessante é que nesta população estrangeira havia um nítido predomínio de homens, praticamente o dobro com relação às mulheres, sendo elevado o número de solteiros e reduzido o de famílias legalmente constituídas. Os princípios do laissez-faire dominaram a cena econômica do país desde a abolição até 1930, naturalmente restritos à zona urbana, já que, no setor agrícola, as leis de mercado entraram muito lentamente e, em muitas regiões, a escravidão foi substituída por uma quase servidão. As leis sociais só apareceram timidamente nos anos 20. Em resposta à organização dos trabalhadores e movimentos grevistas, veio a Lei Eloy Chaves (1907) que permitia a expulsão de militantes estrangeiros. Curiosamente, a expansão da legislação social no Brasil ocorreu sempre em períodos autoritários, conforme nos diz Santos (1979). A Lei de Férias, por exemplo, surgiu justamente durante a presidência de Arthur Bernardes, em 1925, governo que se caracterizou pela constante presença do estado de sítio. A época de Vargas e o período pós 1964, momentos em que a ordem política sofria sérios retrocessos, também comprovam a afirmação. Por que o Rio de Janeiro era visto como uma cidade de povo apático, sem interesses que levassem à participação na esfera política? Nossos intelectuais decepcionavam-se com este povo muito longe do perfil liberal ou positivista e que, no entanto, era capaz de se organizar de forma notável, para a vida religiosa, associações mutualistas e festas populares. Embora a Constituição Republicana de 1891 tivesse inovações importantes como o Federalismo, o Estado Laico e o Habeas Corpus, tinha sérios defeitos, segundo Oliveira Viana, fora obra de mera improvisação de um pequeno grupo de idealistas, meio diletantes, meio declamadores, não se ajustando à realidade econômica-social. A ausência de partidos nacionais, já que, nossos partidos republicanos eram regionais e expressão dos grandes proprietários locais, simples agrupamentos em torno de caudilhos, sem programas, sem vinculação aos interesses populares e, sobretudo, sem uma visão de Brasil em seu conjunto, certamente contribuíram para a apatia e desinteresse das massas. Partidos com estas características organizavam a lista dos candidatos, fiscalizavam as eleições e davam posse aos eleitos. A política dos governadores, criada por Campos Sales, visava em parte suprir esta falta de sustentação, mas afastou ainda mais as minorias da vida política e acirrou os ânimos entre os diferentes grupos oligárquicos. A campanha civilista em 1909, lançando a candidatura de Rui Barbosa contra a do Mal. Hermes da Fonseca e apoiada pelas oligarquias, foi um dos poucos momentos de interesse político real para a população, mas estava previamente vencida pela máquina eleitoral. O coronelismo era o sustentáculo dos candidatos oficiais. A fraude, a pressão sobre os eleitores e a intimidação eram características de nossas eleições dos sertões até as grandes cidades. O voto aberto propiciava estas manipulações e fraudes. Após a eleição, vinha a batalha do reconhecimento, a chamada "degola política". Vencer as eleições não era apenas ter o maior número de votos, mas passar pela "Comissão Verificadora de Poderes", que sistematicamente barrava os candidatos eleitos pela oposição, acusando-os de fraude. No governo de Rodrigues Alves, o candidato ao senado Antonio Bittencourt obteve 7.334 votos e o empossado foi o Barão de Ladário com apenas 270 votos. Casos como estes eram freqüentes, provando a eficiência da Comissão Verificadora em anular a oposição. E o povo, como reagia a esta República que havia acenado com maior participação, mas que o afastava cada vez mais dos círculos decisórios? Segundo Carvalho (1987), o povo que os intelectuais buscavam era constituído de cidadãos ao estilo europeu, um burguês vitoriano ou jacobino de 1789 e, naturalmente, não o encontravam no Rio do início do século. Seria verdade a apatia e o desinteresse popular no Rio? A história imperial fala de agitações, revoltas populares desde a Independência até a Abolição. Para os observadores estrangeiros, estas agitações não eram de cidadãos, mas da escória, da canalha das ruas; a população do Rio não passava no teste de cidadania para estes analistas. Eram mesmo bestializados? Até as experiências de mobilização popular de anarquistas, de liberais, ou não partidárias, redundavam em nada. Mas, e a República não excluíra o povo através das restrições ao direito de voto? Não votavam: analfabetos (50% da população), mulheres, menores de 21 anos, praças e frades. Numa população em 1890 de 515 mil, votavam 109 mil: a exclusão era de 80% da população. O mais curioso é que a população ativa, com direito de voto, comparecia também em reduzido número às eleições. Provavelmente, o desinteresse era gerado pelas fraudes eleitorais, com as quais a República evidentemente não se preocupava. Lima Barreto em A República dos Bruzundangas ironicamente afirmava que os políticos finalmente teriam eliminado das eleições o elemento perturbador - o voto. Este sistema político sem partidos verdadeiros, sem direito ao voto e vazio de causas transformadoras, realmente não motivava a população que aplicava suas energias em outras atividades, onde a capacidade de mobilização era extraordinária. Tal como em São Paulo, as associações mutualistas e religiosas revelavam um alto grau de participação e organização. Eram famosas as festas da Penha e da Glória. A da Penha envolvia cerca de 50 mil pessoas, verdadeira mistura de culturas, degenerando, algumas vezes, para o conflito com as forças policiais ou capoeiristas. A festa da Glória desprezava toda a hierarquia reunindo pessoas das mais diferentes classes sociais. O Carnaval dominava pela irreverência todos os segmentos. Cerca de 50% da população pertenciam a associações mutualistas: organizações operárias, étnicas, religiosas, funcionários públicos, diferentes profissões. A característica básica destas associações era o seu caráter assistencial e as lideranças partidárias tinham pouco sucesso em transformá-las segundo seus objetivos políticos. Morse (1988), vê a cultura ibérica, da qual somos herdeiros, marcada por elementos de integração, com predomínio do todo sobre o indivíduo, contrapondo-se à cultura anglo-saxônica que prioriza o indivíduo sobre o todo. Nossa idéia de Estado seria a tomista, voltada para o bem comum e comunidade hierarquizada, mas, ao mesmo tempo, temendo o Estado como fonte de puro poder, conforme a visão maquiavélica. Em nossa sociedade, essa contradição constituía-se em foco de eterna tensão, assumindo o Estado, por vezes, formas populistas, messiânicas ou autoritárias. Na cultura anglo-saxônica, a contradição se dava entre a liberdade e a ordem, resolvidas, compatibilizando-se a democracia com o liberalismo, embora sujeita a crises. O individualismo anglo-saxônico, em busca do bem comum era capaz de separar o interesse público do privado, sendo o grande responsável pela capacidade de associação destes povos. Nossas características comunitárias, formadas pela família, clãs e grupos de amigos, geravam a falta de uma consciência coletiva e produziam o fisiologismo a nível político. Alberto Salles afirmava que o brasileiro era muito sociável e pouco solidário. Holanda (1976), retrata "o homem cordial" como inadequado às relações impessoais, fruto de uma sociedade individualista, com enormes dificuldades em separar o público do privado, ou usando a linguagem de Weber, muito longe do Estado Burocrático e muito próximo do Estado Patrimonial. Outro aspecto abordado em Raízes do Brasil é o poder simplificador das idéias entre nós, havendo confiança profunda nas teorias importadas de outras realidades, tais como o liberalismo, a democracia, o positivismo, o darwinismo, convertendo-se, muitas vezes, nas bases intelectuais de movimentos rebeldes, organizados de cima para baixo, sem sustentação popular, como, por exemplo, a Inconfidência Mineira, a Independência e o Movimento Republicano. Para Holanda (1976), a passagem do rural para o urbano provocou a emergência de um novo Brasil, que ele chama de americano, e a destruição das raízes ibéricas. Acreditamos que, sobretudo, após a Proclamação da República, em 1889, esta ruptura foi completa, dada a impessoalidade da lei rompendo com o unitarismo e paternalismo imperiais. Estes fatos contribuíram, em parte, para explicar o comportamento de desinteresse das massas e as explosões populares de Canudos, Contestado e Vacina. Já Ianni (1992), afirma que, em fins do século XIX, parecíamos viver ainda no século XVIII, carregando anacronismos, tendo uma população dispersa pelo território, dividida pelos regionalismos, pelas diferenças raciais, impedindo uma integração social de povo- nação e gerando um alheamento do Estado em relação aos interesses populares. Oliveira Viana, grande expressão do pensamento conservador, atribuía ao Estado um papel civilizador e considerava a sociedade civil fraca e despreparada para o exercício dos assuntos públicos. O povo deveria ser tutelado por um Estado moderno dinâmico (Ianni, 1982). Freyre (1954), superando as contradições de raça e cultura, vê, na família patriarcal, a gênese do poder estatal. As relações raciais foram diluídas dentro da família patriarcal; valoriza a miscigenação e o papel do escravo na formação de nosso caráter, nascendo o mito da democracia racial. A problemática racial foi também a tônica dos trabalhos antropológicos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roquete Pinto, embora, dentro de uma perspectiva histórica e social, estejam impregnados de determinismo geográfico, darwinismo e racismo. A idéia do branqueamento da raça é comum nestes autores. A grande questão é saber como estas questões contribuíram para explicar a formação do povo, do cidadão e da nação, como afirma Ianni, verdadeira obsessão nos estudos histórico-sociais e na literatura, como vimos ao longo deste trabalho. Nos momentos de ruptura histórica, independência, abolição, república, novamente surge a questão: Quem é o povo brasileiro? Quem poderá ser cidadão? A cidadania, segundo Ianni, é o elo crucial desta história. Em 1823, quem era cidadão brasileiro numa população de índios, negros libertos, escravos, mestiços, brancos ricos e pobres? Em 1891, eram todos aqui radicados, nascidos ou estrangeiros, desde que alfabetizados; em 1934, a preocupação são os imigrantes europeus e suas idéias socialistas, fascistas, anarquistas. Em 1988, ressurge a questão do índio e do negro, retomando-se a temática racial, ainda não equacionada. A nação continua em busca de sua identidade. O Rio de Janeiro foi o grande laboratório para analisar todas estas questões na Primeira República: nossa tradição comunitária ibérica em crise, o avanço liberal não acompanhado de eficaz participação do povo no processo político, a convivência da ordem com a desordem, como, por exemplo, a utilização de capoeiras e capangas no processo eleitoral, e como informantes da polícia, foram produzindo uma mentalidade pragmática, irreverente, e um saber popular para lidar com a realidade em benefício próprio, uma duplicidade de mundos, um descrédito com a lei, a formalidade e, sobretudo, com a participação política. O povo percebia a manipulação e respondia, com desinteresse, só recorrendo à revolta quando o Estado impunha por métodos extremamente autoritários suas metas e transformações, como em 1904, na Revolta da Vacina. Como afirma Carvalho (1987), a cidade do Rio de Janeiro não apresentava, no início da República, características burguesas que favorecessem o surgimento da cidadania. A exclusão popular persistia mesmo após a República; o poder oligárquico saiu fortalecido, sobretudo, após os governos militares e a derrota do positivismo. O passado colonial escravista impedia, pela discriminação e racismo, que a ordem burguesa liberal abrisse caminho para uma ampla cidadania. O povo decepcionava a elite econômica e pensante, pois não se enquadrava em seus modelos. O pensamento conservador incentivava um Estado civilizador que, em nome destes objetivos, reformulou toda a vida urbana, sempre com métodos autoritários, rompendo o precário equilíbrio e abrindo caminho para explosões populares. Enquanto, na esfera política, a integração não ocorria, as estruturas comunitárias, próprias do nosso iberismo, aproximavam os diferentes segmentos: negros, imigrantes, classe média, operários, forjando uma identidade no samba, futebol, carnaval, cuja irreverência misturava ordem e desordem, que ainda hoje constituem a marca do Rio de Janeiro. CONCLUSÃO Iniciamos nosso trabalho acompanhando a trajetória dos soldados negros, mestiços e brancos pobres, após a Guerra do Paraguai, e suas possibilidades de ascensão dentro e fora da instituição militar. O conflito expôs claramente as mazelas da sociedade imperial e a incapacidade do governo em alterar o quadro político-social. O exército sofreu as conseqüências desta situação e, ao terminar a luta, através da jovem oficialidade, assumiu posições de franca hostilidade ao governo monárquico e às suas instituições, sobretudo a escravidão, aliando-se a outros setores descontentes, como cafeicultores e classe média e terminando por derrubar o regime. Contudo, marcada por uma ética elitista, a instituição militar não conseguiu abrir canais de mobilidade e ascensão social para a tropa, constituída de libertos, mestiços e brancos pobres, por considerá-los incapazes de compartilhar os valores da cidadania. A estes artífices da vitória brasileira, que haviam defendido lá fora os interesses nacionais, não restaria outro caminho senão aumentar as camadas excluídas que, após a abolição, buscavam trabalho, principalmente, nas zonas urbanas. A modernização do exército só se consolidaria com a ampliação da base social. Embora a proposta republicana acenasse como a grande solução para estas questões, na prática, o governo manteve-se oligárquico, impedindo a participação política da quase totalidade dos brasileiros na época. Basta lembrar que, no Império, cerca de 3% da população tinham direito ao voto e, com a República, este número saltou para 6%. O desenvolvimento capitalista avançava necessitando de mão-de-obra e o mundo intelectual e político divergia quanto à integração e eficiência do ex-escravo agora incorporado aos trabalhadores nacionais. As concepções racistas difundidas neste período dificultaram sobremaneira a ascensão social do negro na sociedade de classes. Da mesma forma, o mito da "democracia racial" atenuou o conflito, impedindo que a verdadeira natureza das relações raciais entre nós fossem desvendadas, mas em nada contribuiu para solucionar a questão, retardando, também. a consciência negra sobre o fato. Por outro lado, os imigrantes que aqui chegaram, a partir do século XIX, vistos como uma força regeneradora do valor trabalho, capazes de resgatar nossa identidade aviltada pela escravidão, também foram alvo desta exclusão. Revoltas como as de Thomas Davatz, choques com fazendeiros escravocratas, endividamento, levaram países como a Alemanha e Itália a proibirem a imigração para o Brasil. A ocupação do espaço urbano foi um retrato desta exclusão, no caso de São Paulo e Rio de Janeiro. Habitando áreas centrais degradadas, cortiços ou novos espaços sem infra-estrutura e serviços públicos, o povo foi empurrado para serviços domésticos, surgindo a figura do "agregado urbano" . O operariado foi submetido a longas jornadas de trabalho, sem proteção de leis trabalhistas, tendo, pela excessiva oferta de mão-de-obra, muitas vezes, de sobreviver no mercado informal, marcado pela instabilidade. O espaço urbano era um retrato desta exclusão, reunindo italianos, portugueses, caipiras, negros, na mesma luta pela sobrevivência e reconhecimento dos direitos da cidadania. Em Marshall (1987), verificamos que, à medida em que o capitalismo evoluiu, desenvolveram-se, paralelamente, o sistema de classes e o exercício da moderna cidadania que, nem sempre, se harmoniza com o sistema e as classes sociais. A cidadania moderna, baseada na igualdade jurídica, permitiu o aparecimento de um sistema de classes nos quais os direitos de cidadania coexistiam em inteira harmonia com as desigualdades sociais. Estamos nos referindo ao cerne da cidadania moderna: os direitos civis, que eram indispensáveis para o próprio desenvolvimento da economia capitalista: direito à vida, à liberdade e à propriedade. Ao incluir os direitos políticos e sociais, a relação da cidadania com o sistema de classe, passa a ser conflituosa. Assim, se por um lado, a cidadania é um status que reduz a desigualdade de classes, por outro, acaba provocando, também, conflito entre elas. Barbalet (1989), ressalta o papel do Estado e da classe dirigente neste contexto. As classes dirigentes, negando sua responsabilidade para com as classes subordinadas, mobilizam-se politicamente e transformam o Estado no centro deste confronto. Por outro lado, o movimento trabalhista, através da luta, obteve, ao longo da história, direitos tanto da classe dirigente como do Estado, como ressaltam Giddens e Dahrendorf. O Estado, para Barbalet, assumiria, então, três opções em relação à pressão social por mudanças: ignoraria a pressão, consentiria ou reprimiria os grupos que a exercessem. A decisão do Estado seria orientada, tendo em vista consolidar a base social, permitindo maior governabilidade. Em certos momentos históricos, a concessão ou a recusa podem fortalecer a ação do Estado. Em nosso trabalho, verificamos que a evolução dos direitos de cidadania seqüencial propostos por Marshall não ocorreram na mesma ordem em nosso país. Na Constituição de 1824, apareciam, simultaneamente, os direitos civis e políticos importados das realidades européia e norte-americana e sem grande pressão popular. Contudo, a mentalidade escravista, a violência privada e do Estado tornavam estes direitos absolutamente ineficazes para o cidadão. De nada valia direitos políticos, sem a plena consciência dos direitos civis, a prática da liberdade e os limites do poder do Estado. Confirmamos, contudo, a visão de Marshall no que se refere ao conflito de classes gerado pela ampliação da cidadania. Na Primeira República, este fato transparece. Confere também o posicionamento de Barbalet, em relação ao papel do Estado; no período analisado, este alterou-se entre a omissão e a repressão. Da mesma forma, nosso iberismo cultural impediu o desenvolvimento de um senso maior do valor do indivíduo e capacidade associativa que lhe permitem sair dos círculos de relacionamento dos grupos primários - família e amigos - e se organizar funcionalmente. Em nossa cultura, há sentido de participação e integração ligados aos círculos primários afetivos e pessoais, desvinculado da política e da sociedade nacional e, portanto, da própria cidadania. A construção do espaço público, terreno da convivência e harmonia dos interesses divergentes passa pela consciência da liberdade de cidadãos responsáveis e capacidade de associação dos grupos da sociedade civil. O divórcio entre o pensamento político das elites e a questão social impediu que espaço público fosse ampliado, da mesma forma que nossas características culturais ofereciam uma certa dificuldade à iniciativa do cidadão nesta direção. Kant em A paz perpetua (Rosenfield,1982) afirma que a Constituição da República define o indivíduo, simultaneamente, como homem, súdito e cidadão, na medida em que reúne liberdade, obediência e igualdade perante as leis. Se o súdito não é cidadão, a Constituição não é verdadeiramente republicana, o presidente não é membro do Estado, mas seu proprietário e o bem comum passa a ser tratado como propriedade de poucos. Portanto, na Primeira República brasileira a privatização do Estado levava as massas excluídas a um comportamento de apatia ou revolta por não se sentirem partícipes da república.
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Maria Aparecida Macedo Pascal
- Universidade Mackenzie
Mirian Elza Finocchiaro Penteado Rocha - Colégio Magno