A Precariedade Residencial ou uma
Rediscussão da Ideia de Pobreza: Os Processos de
Realojamento no Contexto da Intervenção Pública |
1. Interrogações que resultam do confronto com
o terreno
A imagem pública dos processos de realojamento (e a das
populações-alvo: os realojados) está associada a um dos
domínios em que a intervenção pública mais aparece
vocacionada para lidar com populações economicamente
insolventes.
Estes processos, parte de uma política mais vasta de
intervenção pública no campo da habitação, ganham a
visibilidade própria a contextos de enorme pauperização e que
reforçam todo um discurso tendente a valorizar a questão da
pobreza e da sua erradicação como um objectivo central das
políticas públicas.
Ora, a questão que se coloca quando se trabalha com os
instrumentos das Ciências Sociais na análise de 'contextos de
realojamento', o que é o nosso caso, é a das nomenclaturas
empregues para definir as populações-alvo de uma intervenção
deste tipo. Por simplificação, admitimos o recurso a várias
noções, eventualmente apresentáveis como sinónimas; só que
quando o nosso trabalho tem especificidade sectorial (lidamos com
uma população objectivamente alvo de uma intervenção que visa
suprir a precariedade residencial) o seu uso permanente pode
deitar por terra o esforço de clarificação que nos é pedido.
Foi por isso que nos dispusémos, ao longo da feitura dos nossos
relatórios de actividades, que visavam identificar níveis de
conflitualidade e a afirmação de identidades em contexto de
imposição (como são sempre!) de populações deslocadas pelo
realojamento, a reflectir a variabilidade das noções a que
poderíamos recorrer. Listámos entre outras 'características'
possíveis de identificar nas populações em deslocação (ou
já deslocadas) devido ao realojamento a pobreza, a carência, a
insolvência, a precariedade, a exclusão.
E então, porque é que não usámos a noção de pobreza para
definir populações carenciadas e em processo de realojamento?
Porque, no confronto com a experiência de terreno, a noção de
pobreza está mais associada à enunciação de um 'estado de
coisas' do que à sua caracterização, denuncia a persistência
estrutural de fenómenos de incapacidade de mobilidade de
populações carenciadas, mas não as clarifica. Para que isso
ocorresse, teríamos de falar de pobrezas ou tipos de pobreza, o
que se apresenta difícil, já que a pobreza é referente a um
modo de viver a insolvência e não nos pareceu, para o efeito,
subdivisível. Mesmo falar de pobreza urbana corresponde a um
modo de intervir alertando para a perpetuação de dificuldades
de subsistência de um número importante dos que vivem na era da
modernidade e da abundância, mas não define os problemas que
lhe estão associados. Para tal, seria necessário passar do
domínio da questão social da pobreza para os problemas
específicos dos domínios da vida quotidiana em que tal
condição se faz sentir e essa transposição não só não é
fácil como provavelmente não será correcta, porque não é
impermeável aos problemas específicos dos campos sociais em
referência, sejam eles a habitação, a saúde, a educação
Ao generalizar, acabamos por retirar eficácia à aplicabilidade
da noção. E isto leva-nos a uma questão de fundo, já que nos
encontramos numa sociedade em que existe uma intervenção
pública sistemática no domínio da acção social (do Estado
central, das autarquias) e em que as populações entendidas como
pobres são alvo de planos de 'reconversão social'.
Será que faz sentido ainda as identificar, como se faz em
contextos em que estas políticas não existem ou são
completamente ineficazes? Não será que a ideia de 'pobres' nos
remete para as situações anteriores a essa intervenção? Será
que as questões despertadas pela ideia de exclusão nas
sociedades em que a cidadania tem valor acrescido são as mesmas
que se verificam naquelas em que esse valor não é (tão)
marcante?
Não correremos o risco, por efeito de simplificação, de
entender os nossos 'pobres' tal qual os outros que em contextos
africanos, asiáticos ou sul-americanos vivem à míngua de bens
de consumo imediatos, em que esses bens simplesmente não
existem, ao contrário do que acontece entre nós, em que os
ditos 'pobres' antes não lhes acedem?
Falar de luta pela erradicação da pobreza, como genericamente
se faz , como se os problemas em torno da pobreza fossem sempre
os mesmos, não será mais perigoso que vantajoso?
Para nos situar a discussão sobre a pobreza no contexto
particular de Portugal, país europeu do final do milénio,
recorremos a um interessante texto que Jordi Estivilli publica no
livro «Pobreza não» do Ministério da Solidariedade e
Segurança Social e que toca precisamente num aspecto que nos
parece central nesta nossa preocupação conceptual. Afirma o
autor que «a pobreza e os pobres ficam à margem, quase como um
resquício dos velhos tempos, apagados pelos novos sujeitos
históricos, cidadãos e trabalhadores, que constituirão a base
da construção dos 'Estados Providência'. Esta função
residual, real e simbólica só se modifica, a partir de então,
quando, devido a grandes catástrofes, guerras e largos períodos
de depressão económica, conjuntos importantes da população
voltam a achar-se afectados pela precariedade» (1997, p.21)
Ora, essa característica de persistência estrutural dá-lhe um
cunho de especificidade, diferente do que acontece noutras
sociedades desprovidas de sistemas de protecção pública dos
seus cidadãos, e pela qual a própria ideia de pobreza se recria
enquanto 'arcaísmo despropositado' nos nossos dias e que pode
iludir aquilo que de facto há que questionar: a precariedade
efectiva da existência de muitos dos nossos contemporâneos que
vivem em sociedades que produziram mecanismos, mais ou menos
eficazes, de prevenção e de combate à 'miséria ancestral e
permanente'.
Em nosso entender, decalcar a ideia de que o pobre é o
carenciado e que o carenciado é merecedor de melhores
condições de vida decorre de uma lógica assistencialista, que
pressupõe, sem o dizer, a condição de inevitabilidade dos
agentes face às situações de exclusão. Perante esta ideia de
incapacidade, de indigência inerente à condição dos
excluídos fomo-nos apercebendo das capacidades objectivas que os
alvos destas intervenções têm de desenvolver estratégias de
actuação face às 'investidas' institucionais. Daí termos
optado por uma noção mais operacional, dirigida à
especificidade da condição económica e social face ao domínio
do quotidiano tratado, sem pretensões englobantes e mais
interpretativa.
A noção que adoptámos, a de precariedade, remete para a
inexistência concreta de bens social e economicamente valiosos,
enquanto que a ideia de pobreza remetia, antes de mais, para uma
condição de imutabilidade social.
Se a ideia de pobreza poderia ser útil para analisar a
persistência de problemas estruturais nas sociedades
contemporâneas, não o é certamente na compreensão de
fenómenos associados à transformação do habitat e dos modos
de vida (como aqueles sobre os quais nos debruçámos). Nestes
processos, as expectativas daqueles que são alvo de
intervenção pública são tendencialmente orientadas pela
consciência de que têm o direito a ser beneficiários de
iniciativas estatais ou camarárias. Por isso, a opção do
realojado de querer ou não ser 'intervencionado' e a
possibilidade de ser ouvido quanto ao modo de isso acontecer
baralha a ideia de pobreza enquanto condição reverente de
exclusão.
Uma ilustração
Para tentar concretizar o que ficou exposto anteriormente,
apresentamos no quadro seguinte informação recolhida através
dos inquéritos efectuados a diferentes populações do concelho
de Oeiras, no âmbito dos projectos «Coexistência residencial
em contexto de realojamento» e «Integração e exclusão
sociais no Vale de Algés» . Sujeitos a uma mesma questão -
«Como é que se vê a si próprio em relação aos outros aqui
na zona?» - e confrontados com 4 opções de resposta - «como
um pobre, como um trabalhador, como classe média, ou só se
identifica consigo próprio», os inquiridos posicionavam-se em
uma das 4 hipóteses, reflectindo não só o modo como se
auto-representam na estrutura social, mas também - como veremos
adiante - aproveitando o veículo-inquérito para fazer chegar a
sua mensagem aos seus destinatários - os interventores
públicos.
Quadro 1. A auto-representação da condição social de
populações ligadas ao realojamento.
BAIRRO Outurela Pombal A.Castro BJCaraça Laje
CONDIÇÃO Realojada A realojar Realojada Cl. média Realojada
Clandestino
Pobre 14.3% 35.7% 23.0% 3.7% 20.0% 15.9%
Trabalhador 44.0% 29.2% 33.0% 16.5% 35.0% 38.1%
Classe Média 16.5% 13.9% 15.0% 66.1% 30.0% 27.0%
Individualismo 25.2% 21.2% 29.0% 13.7% 15.0% 19.0%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100%
(considerando apenas as respostas válidas)
Quando procuramos averiguar o modo como as populações
inquiridas se posicionam na estrutura social, encontramos um
conjunto de correlações pertinentes, em primeiro lugar, para
explicar a importância do acto do realojamento na
identificação pessoal. Recorrendo à informação que
recolhemos, através dos relatórios dos projectos atrás
referidos tomamos consciência de como duas populações (a
'realojada' e a 'a realojar') social e economicamente muito
próximas se distinguem tão claramente na forma como enunciam a
sua condição social (antes de mais, de trabalhador entre os
realojados e de pobre entre os restantes, para o caso de
Outurela). Mas, se nos mantivermos no Quadro nº 1 e se
atendermos ao tipo de resposta dado pelos residentes em bairros
em que o realojamento já ocorreu há mais tempo, como o Bairro
do Pombal e o Bairro Bento de Jesus Caraça, encontramos
igualmente como resposta modal um auto-posicionamento como
trabalhador, à semelhança dos já realojados na Outurela; esta
característica dominante foi por nós detectada num outro
bairro, de iniciativa 'semi-clandestina' (Ribeira da Laje).
Refira-se que só no caso do Bairro Dr. Augusto de Castro (um
bairro de iniciativa privada, que recentemente ficou ligado a um
bairro de realojamento - o do Pombal) é que encontramos
claramente um auto-posicionamento de 'classe média', por
oposição ao de trabalhador ou de pobre, verificado nos bairros
sociais ou degradados.
No sentido de evitar conclusões apressadas, diremos que o que
fica sobrenotado é a distância entre a auto-representação de
uma população (expectante) em fase anterior ao realojamento -
processo do qual tirará directamente vantagem - e que se diz
pobre, afastando-se assim da classificação de trabalhador,
corrente nos bairros de realojamento. Aparentemente, o processo
de realojamento concretiza em parte algumas das intenções
manifestadas pelos promotores públicos - requalificar
socialmente uma determinada população (ou populações),
contribuindo para a reformulação da identidade social dos seus
beneficiários, que se passa a sustentar, sobretudo, em atributos
adquiridos. Mas, além disso, é de supôr que uma
auto-representação como sendo excluído ('pobre') poderá
funcionar como chamada de atenção aos interventores públicos,
por parte daqueles que desejam ser alvo de intervenção
(realojamento).
Esta situação equívoca entre 'ser classificado' e 'deixar-se'
classificar' assenta no conhecimento mútuo de interventores e
'intervencionados' de percursos individuais e familiares
desestruturantes. Concretamente, a provisoriedade das situações
residenciais anteriores, que não desaparece totalmente depois do
estabelecimento no bairro de realojamento estrutura um
determinado modo de vida (que, nesta acepção, surgia duplamente
penalizado). Desenvolve o estigma associado à condição de
(ex-) morador em bairros degradados (de barracas) e 'contamina' a
identidade dos indivíduos e as suas representações, sendo,
pelos próprios, enaltecida ou repudiada conforme os contextos e
situações particulares.
2. Estratégias para a negociação da melhor forma de aceder à
nova condição residencial: os interventores e os
intervencionados.
Ao nível da auto-representação da condição social,
apercebemo-nos de quanto é central o momento do processo do
realojamento (ou o facto de nele se estar envolvido) na
avaliação de que se é pobre ou trabalhador. Mas toda esta
auto-avaliação é feita com a consciência de que se pode
intervir na concretização das medidas previstas por iniciativa
pública. Ou seja, os realojados não são sujeitos desprovidos
de capacidade de gerir e desenvolver estratégias de afirmação
e de defesa dos seus interesses, tendo inclusivé capacidade de
participar na negociação da sua futura (actual) condição.
Assim, entendemos que o uso da noção de pobre pelos próprios
corresponde mais a uma estratégia de defesa de interesses do que
a uma auto-classificação resultante do que lhes é imposto
institucionalmente. Em abono desta ideia, apresentamos de seguida
algumas reflexões a propósito das relações de poder e das
formas de comunicação produzidas em processos de realojamento.
Ora, uma das componentes principais de qualquer realojamento é
consubstanciada no 'processo negocial' que decorre a partir do
momento em que o organismo promotor tem de sujeitar, de alguma
forma, essa acção à aprovação dos seus destinatários.
Curiosamente, isso só acontece, porque o carácter quase
exclusivamente clandestino dos aglomerados e das construções
que são sujeitas a este tipo de intervenção (e que pode
resultar na sua demolição ou, muito menos frequentemente, na
sua recuperação) não concede margem de manobra possível para
os seus moradores. No entanto, os promotores da iniciativa
compreendem que, por estar a lidar com inúmeras situações
pessoais complexas (e precárias), que necessitam de uma gestão
social, terão inevitavelmente que desencadear processos
negociais conducentes à concretização da política prevista.
Por outro lado, os futuros usufrutuários da iniciativa
facilmente se apercebem de que (estando ou não de acordo com a
iniciativa e tendo a consciência da sua quase inevitabilidade)
só ganharão realmente em apresentar algumas reivindicações
ou, pelo menos, em não aceitar as coisas tal como elas lhes são
impostas.
Do lado dos promotores, e ao contrário de muitas outras
decisões de carácter político, económico ou social que são
tomadas quotidianamente pelos organismo públicos, cristalizou-se
a ideia de que os processos de realojamento (cuja face mais
visível, na última década, se deveu sobretudo ao programa
comunitário PER) são algo que deve ser, mais do que imposto,
negociado. Essa negociação, em nosso entender, é encarada
pelos organismos públicos, com a prudência que resulta de dois
tipos de medo: o medo de, com o processo, despertar ou promover
tensão social entre populações (agora) descontentes e o medo
de caír na tentação de não serem tão firmes e impositivos
quanto a legitimidade que lhe é conferida pela lei permite.
Assim, normalmente, os processos negociais deste tipo incidem
sobre um vasto conjunto de matérias, que desembocam
frequentemente nas mesmas questões:
- para onde se vai: o bairro de destino
A primeira questão que é colocada logo que os organismos
promotores do realojamento' manifestam a 'necessidade' desse tipo
de intervenção é: «saír daqui? Mas para onde é que me
querem mandar?». Também em relação aos bairros destinados a
realojamento se produzem efeitos de hierarquização, que se
concretizam na ideia de que existem bons bairros e maus bairros
(ou, pelo menos, bairros a evitar) e daí dependendo o que se
entende, genericamente, com a melhor localização no contexto do
realojamento. Esta localização é não só geográfica
(proximidade do emprego, acessibilidade e frequência de
transportes, etc.) mas igualmente funcional (quanto aos
equipamentos disponíveis na nova área de residência). Estas
são as matérias prioritárias nas reivindicações dos
realojados às instâncias públicas e decorrem do difícil
equilíbrio negocial em que os interventores procuram promover a
autonomia das populações instaladas (no discurso directo,
poderíamos exprimir esta ideia enquanto: «já vos demos a casa,
agora tratem do resto») e a posição dos intervencionados, que
postulam enquanto populações que não puderam escolher (no
discurso directo, poderíamos exprimir esta ideia como: «já que
nos puseram aqui, dêem-nos as condições necessárias»). Ora,
a negociação passa precisamente por estabelecer até onde um
tipo de discurso ou outro podem ser transformados ou em actos
concretos de mobilização das populações para assumirem o que
é 'seu', ou na colocação das instâncias públicas em
posição de julgamento público permanente.
Da nossa observação, constatamos que tal negociação varia de
contexto para contexto e que o controlo dos processos de
relacionamento interventores / intervencionados se estende da
imposição de tipo policial à colaboração efectiva na
resolução de problemas decorrentes da edificação com destino
social.
- tamanho do fogo (tipologia)
Esta questão está relacionada com a definição do tamanho do
agregado familiar, o que provoca, por parte de alguns moradores,
a mobilização de todo o tipo de estratégias que visam obter o
maior ganho possível (a maior casa disponível), e que podem
passar por incluir no agregado familiares que efectivamente dele
não fazem parte.
As negociações em torno desta questão (tipologia atribuída)
são também frequentes nos casos de indivíduos isolados que
são realojados em fogos T0, que, pela sua estrutura distinta dos
modelos de casa socialmente definidos como convencionais,
provocam nestes uma sensação de estranheza e repúdio (são
fogos que não dispõem de quarto, apenas de uma sala, uma
cozinha e uma casa de banho)
- quando vão
Duas posições antagónicas se definem em relação a este
assunto: de um lado, os moradores que procuram negociar com a
Câmara um adiamento sucessivo da data de realojamento
(apresentando justificações consideradas mais ou menos
legítimas), o que acaba por resultar numa forma de tentar evitar
o inevitável; de outro lado, encontramos aqueles que, por
considerarem insuportavelmente precária a sua condição
residencial, manifestam agrado em mudar de casa (e de 'vida') no
mais curto período de tempo.
A intervenção dos serviços da Câmara Municipal, neste
domínio, nem sempre é vista como bem vinda por parte dos
moradores. Inesperadamente ou talvez não, muitos dos potenciais
beneficiários do realojamento manifestam a vontade expressa de
prescindir desse direito, invocando que preferem ser realojados
noutras fases, noutro sítio ou não ser realojados de todo. Esta
recusa poderá ser devida ao medo de perder a 'liberdade' que
lhes é 'concedida' pela permanência num espaço informal e
quase sempre clandestino, onde por certo o 'controlo' por parte
dos organismos públicos, por exemplo, é menor, tal como as
despesas inerentes à sua condição residencial. Essa situação
acaba por agravar a 'imagem' que os serviços da Câmara têm
àcerca da atitude global dos realojados face a um processo que
deveria ser também por estes partilhado:
«é assim: eles não fazem o mínimo para terem casa, somos nós
que andamos atrás deles para eles terem casa, portanto a grande
maioria não está nada interessada em mudar de casa, está tudo
bem onde está... é claro que há aqueles que querem lá ficar
até à última, até poderem» (entrevista a uma assistente
social da Câmara Municipal)
Há também o reverso da medalha: os moradores que, de facto,
desejam ser realojados o mais rapidamente possível e aos quais
os serviços da Câmara não vão atribuir, só por isso, uma
vaga em primeiro lugar:
«depois há os outros que não, que querem casa, porque chove,
porque não sei quê» (idem)
Sendo os bairros de realojamento resultado de iniciativa pública
(governamental ou camarária), essa condição estabelece, logo
à partida, um estatuto especial à entidade promotora, como
referente em relação ao qual se projectam as expectativas e
aspirações de uma população em situação de precariedade e
tendencialmente excluída de outras esferas de actividade.
A análise do discurso dos beneficiários desse tipo de
intervenção revela, de forma mais ou menos declarada, um
conjunto de imagens àcerca da actuação das entidades públicas
(neste caso, uma Câmara municipal) nos bairros. Esses vários
pontos de vista são aqui sintetizados em 4 imagens-tipo, que
não são mutuamente exclusivas, isto é, surgem associadas (por
vezes de forma contraditória) no discurso dos vários
entrevistados . É curioso notar que essas representações das
entidades públicas vão desde uma percepção difusa e impessoal
(a 'Câmara' como um organismo superior e inacessível) até a
uma percepção mais concreta e pessoalizada dos desempenhos ('o
presidente da Câmara', normalmente a figura mais conhecida dos
moradores, 'as assistentes sociais', 'a Divisão de
Habitação'):
1. Câmara intrometida e impositiva
2. Câmara indiferente e pouco interventiva
3. Câmara pouco cumpridora com as suas obrigações
4. Câmara generosa
1. Esta imagem é concebida pelos habitantes que consideram que a
Câmara se intromete na vida deles, não só ao querer tirá-los
dos sítios onde vivem (no processo de realojamento), mas também
ao querer 'comandar' a forma como organizam a sua vida
quotidiana. A noção de imposição é aplicável aos discursos
que defendem que «o realojamento no Bairro X foi forçado, sem
qualquer hipótese de escolha» (em termos temporais e de
colocação geográfica) para os habitantes;
2. A Câmara é percebida como uma instituição distante, que
«apesar de conhecer os problemas do bairro, pouco ou nada faz
para os resolver». As queixas mais frequentes, neste aspecto,
referem-se à falta de infra-estruturas de apoio no bairro
(espaços verdes e espaços de convívio), à falta de
policiamento e à não-intervenção em situações de conflito
entre vizinhos. Há quem se queixe, também, da falta de
critérios rígidos na escolha dos moradores do bairro e na falta
de um programa de pedagogia para a «vida em comunidade, em que
os aspectos ligados ao civismo fossem melhor transmitidos». A
eficácia da acção das assistentes sociais é, nesta
perspectiva, altamente questionada, quando alguns entrevistados
defendem que se devia fazer uma avaliação séria das
condições de instalação e tomar medidas punitivas, se
necessário. Essa avaliação consistiria em vistorias às casas
e às condições de vida das pessoas, realizando reuniões de
acompanhamento e aconselhamento com os moradores.
3. Esta será, com certeza, uma posição bastante frequente,
deduzida por nós a partir das entrevistas efectuadas às
assistentes sociais, que nos referiram que a maioria das
populações realojadas mantém uma posição de 'ingratidão',
de altivez e bastante reivindicativa em relação a tudo o que
provenha da Câmara Municipal. Os fundamentos desta posição
radicam na convicção de que «é obrigação da Câmara dar
casas aos pobres» e criar condições para que as suas vidas
sejam menos difíceis, o que, segundo os seus enunciadores, não
é de todo proporcionado. É uma posição claramente desconfiada
e chega a assumir a ideia de que a Câmara Municipal faz
perseguições pessoais ou pratica o favoritismo, através de
«artimanhas» para não dar casas a certas pessoas, em favor de
outras;
4. Uma última posição que, na nossa observação, surgiu como
minoritária, defende a Câmara como uma instituição generosa e
(quase) benemérita, pelo facto de proporcionar habitações
condignas a uma população sem condições económicas para a
elas aceder pelos seus próprios meios.
Em dois apontamentos de conclusão, diríamos que da discussão
aqui desenvolvida a propósito da precariedade residencial no
contexto da intervenção pública resultam sobretudo
apreensões.
Uma primeira dá-nos conta de que apesar da 'autonomia relativa'
que algumas destas posições parecem reivindicar, a principal
característica da relação Câmara / moradores é o elevado
grau de dependência destes face àquela, devido não só ao seu
estatuto de inquilinos, mas também porque, graças à situação
de fragilidade das suas ligações a outras esferas da
participação cívica, a Câmara funciona como garante de uma
certa estabilidade, quanto mais não seja como grande empregador
de mão-de-obra com poucas qualificações escolares e
profissionais. Também a ausência de espaços e estruturas de
apoio nos bairros, ao nível da acção social e da dinamização
cultural, promove o papel assistencialista dos serviços da
Câmara Municipal, o que faz correr o risco de perpetuação
dessa situação de dependência. Por vezes, um tipo de
intervenção que se julgaria, à partida, isento de mácula,
apesar de conduzir a resultados positivos nos domínios da
requalificação social (residencial, escolar, profissional, de
'qualidade de vida') é gerador de lógicas não previstas e
cujos efeitos só a médio ou longo prazo poderão ser avaliados.
Outra, do nosso ponto de vista essencial, liga-se com a ideia de
que é imperioso proceder a operações de vigilância constante
sobre as noções e os conceitos que se utilizam quando se aborda
as temáticas da 'exclusão', da 'pobreza' ou, como nós
defendemos, da precariedade. Falar de 'pobreza' com o carácter
imutável que se lhe costuma atribuír, sem preocupações de
contextualização dos processos particulares, não é, em nosso
entender, o modo mais profícuo de abordar realidades tão
complexas como aquela que estudámos.
Nuno Santos Jorge
Luís Vicente Baptista