O processo de exclusão social no Brasil, tal como o entendemos,
é decorrente do modelo económico que privilegia o
desenvolvimento da economia em detrimento do social e o
predomínio da esfera privada sobre a pública. As consequências
desse sistema evidenciam-se na trajectoria do pobre e da
assistência social, bem como das demais políticas sociais,
sobretudo desde 1930. Nesse sentido, a história da assistência
brasileira poderia resumir-se na observação de Ianni (1989:147)
de que no país "
a questão social é problema
policial
A mesma fábrica do progresso fabrica as questões
sociais". Sob outro aspecto, destaca-se, na história, a
contumácia do pobre na construção de estratégias para
amenizar ou reverter as consequências do modelo económico. Os
germes dos direitos sociais foram grangeados a duras lutas e em
função tanto das necessidades do capitalismo nacional e
internacional, quanto das pugnas do conjunto da classe
trabalhadora.
Apesar das conquistas sociais, enquanto 1% da população
brasileira mais rica detém 13,9% da renda nacional, os 50% mais
pobres ficam somente com 12,1% dessa renda, o que apresenta um
quadro de 41,9 milhões de habitantes considerados pobres, com
13,6 milhões na indigência. O modelo económico, ainda mais
excludente e perverso com o avanço da globalização, faz das
crianças as suas principais vítimas. A esse respeito,
observa-se que "
19,8 milhões de crianças de zero a
14 anos vivem em famílias com renda per capita inferior a meio
salário mínimo" (sessenta reais) (FSP, 18/11/97). Além da
realidade da criança empobrecida e entregue a si mesma,
destacam-se outras mazelas sociais, como a desvalorização do
negro, da mulher, do idoso, do deficiente, e, ultimamente, as
altas taxas de desemprego, a falta de moradia e a questão
agrícola.
Numa sociedade de cultura autoritária, cujo modelo promove a
pobreza, em que viver é um favor e não um direito, abre-se o
campo para a implementação e o exercício da tirania. Nesse
contexto, desejamos compreender as políticas sociais no bojo das
relações contraditórias entre capital e trabalho, dirigidas à
população excluída, principalmente a criança e o adolescente.
Tencionamos verificar o seu modo de sobrevivência, suas
estratégias de apropriação da realidade social e a forma como
lhe atribuem novos significados. No Brasil, as políticas sociais
fortalecem, produzem e reproduzem um conjunto de contradições
sociais, contribuindo para a conquista da cidadania e dos
direitos sociais, sentido em que favorecem ricos e pobres. Nesta
perspectiva, a assistência é uma das várias correlações de
forças presentes em cada época da história brasileira, não
apenas internas, mas também actuantes nas relações
internacionais. Compreendemos a assistência no cerne das
relações sociais, longe da visão ingénua ou maniqueísta das
relações sociais, sem regredir no tempo e no espaço,
transportando para o Brasil a lei do pobre, que jogava a culpa da
pobreza no escravo ou na "ignorância" do conjunto da
classe trabalhadora.
As "revoluções de ordem", de 1922 a 1994, não
passaram de reformas que buscavam contemplar as revoluções do
trabalho e do capital através de legislações. Nestes embates
de forças, entretanto, o pobre foi grangeando a passagem de ser
objecto, ou seja, de culpado pela sua situação de
miserabilidade, a ser trabalhador e sujeito de direitos. Apesar
das "políticas de genocídio" da população de baixa
renda, o conjunto da classe trabalhadora conseguiu seguro contra
acidentes de trabalho, jornada de 40 horas, aposentadoria,
educação gratuita, atendimento na área da saúde, férias,
salário mínimo, seguro de desemprego, direito à greve,
estabilidade emprego, serviço de água e esgoto, pensão para
viúvas e doentes. A maturação do capitalismo arrasta o
processo organizativo do conjunto da classe trabalhadora. Dela,
contraditoriamente, advém as políticas sociais que beneficiam ,
num primeiro momento, mais o capitalista, mas que, quase de forma
clandestina, acabam por melhorar as formas de vida da
população. Essa contradição caracteriza o capitalismo que
tanto suga o sangue das suas vítimas como precisa delas vivas
para o continuidade da produção e do consumo. Em decorrência,
abre-se espaço á passagem de trabalhadores à condição de
sujeitos de direitos.
As mazelas sociais brasileiras podem ser explicitadas por uma
realidade caracterizada pelo desenvolvimento desigual combinado,
que vem permitindo à sociedade civil mobilizar-se, conquistar e
manter certos direitos sociais, através das organizações
não-governamentais. A teoria do desenvolvimento desigual e
combinado possibilita compreeender as questões sociais e a
situação das crianças e dos adolescentes de baixa renda, no
país. Só existem ricos porque existem pobres. Só existe
assistência porque existem aqueles que foram excluídas dos bens
de consumo.
No quadro da interparticipação entre sujeito e objecto, em que
a história se faz, as metamorfoses sociais não se restrigem às
alterações estruturais, mas dependem ainda das acções
humanas. Sujeitos em construção e não meros espectadores
emudecidos, os pobres criam no quotidiano estratégias de
sobrevivência que podem mudar a sua história, como o furto, a
agressão, a amizade, o sonho e outras formas de comunicação
com o mundo. Esse é o fio condutor da nossa pesquisa, realizada
junto a crianças e adolescentes abandonados, com o objectivo de
construir a noção de sujeito a partir do quotidiano e aprender
como extraem da exterioridade elementos para consolidar ou criar
projectos de vida. As políticas de assistência e as redes de
solidariedade podem ser um instrumento fundamental para a
construção desse sujeito. Pretendemos descrever analíticamente
a política de assistência social voltada à criança e ao
adolescente que vai se construíndo ao longo do século XX, com a
preocupação de capturar a concepção que a assistência tem
dos "excluídos" e como estes chegam a passar de seres
sem desejos ou objectos de esmola a sujeitos de direitos.